O preço da admiração, por Cidinha da Silva

Por Cidinha da Silva
A moça posta vídeo de um grupo de cantores gospel no mural da escritora. Esta, por sua vez, xinga o Facebook, pois, rebelde, o parvo não atende sua solicitação de barrar todas as postagens que não sejam de sua autoria. O sistema permite que alguns burlem a ordem expressa.
A escritora, pela milionésima vez, apaga a postagem indesejada e envia à intrusa a recomendação usual: “por gentileza, se desejar submeter algo à minha apreciação, faça-o como mensagem privada e eu decido se quero ou não postar, e quando o farei, se resolver fazê-lo.” As respostas variam pouco: um pedido de desculpas aqui, a atribuição da traquinagem ao filho ou outra criança da casa acolá, ou o uso por parte do próprio emissor da senha permissiva de que “pensou que não tivesse importância” e/ou a escritora iria gostar.
É um bla-bla-blá chato para justificar o injustificável, ou seja, o perfil de uma pessoa nas redes sociais só é público se o dono ou administrador o abre para a participação do público, se convida as pessoas a postarem, se elas são bem-vindas ao fazê-lo, principalmente quando se trata de divulgação de coisas de gente adicionada ao perfil. Se o que se quer é mesmo compartilhar (palavra tão bonita, cujo sentido está esvaziado, hoje), há mecanismos adequados que não a postagem agressiva.
E quem não é invasivo ao postar uma coisa ou outra em mural alheio, é gente amiga, íntima o suficiente para saber o quanto as suas próprias coisas são também coisas da dona do perfil, portanto, bem-vindas.
Mas a moça era insistente e resolveu precificar sua admiração na resposta à autora, disse o seguinte: “engraçado você dizer que não posta coisas do mundo gospel… eu que te admirava tanto pela sua visão de mundo… sei que temos religiões diferentes, mas se for música boa, gospel ou não, pensei que você fosse reconhecer… mas, tudo bem, querida, isso é não ter preconceito…”
O mural da escritora, ao contrário do que a leitora pensa, não está aberto às manifestações artístico-musicais, políticas, etc, que pessoas adicionadas julgam boas. O juízo de valor vigente ali é, exclusivamente, o da dona do perfil. Por outro lado, o mural não é espaço de apologia religiosa, é, sim, lócus de exposição reiterada, poética e contextualizada de valores civilizatórios de matrizes africanas, muitos deles, representados pelos Orixás e  N’Kises.
A escritora é completamente impaciente com a hipocrisia do “frequentar sex shop não pode, mas, se for sex shop gospel, pode”; não pode dizer “nossa senhora”, porém “nossa senhora gospel”, é permitido. Não pode dançar na boquinha da garrafa, nem pode quebrar no funk, do mais leve ao pancadão, mas pode “bater na portinha do senhor que ele abre, abre, abre”, como diz o sertanejo universitário gospel, ou seria um funk gospel? Existe nesta cultura um projeto de dominação ideológica, mercadológica e de lobotomia dos consumidores para os quais a escritora não abre espaço. Só excetuou a manifestação das associações de religiosos evangélico-pentecostais contrários à bestialidade de Marco Feliciano.
Na supermodernidade cotidiana os sentimentos têm preço: “olha, eu te admirava viu? Mas se você não atender aos meus reclames, se não suprir minhas carências de alguém que diga o que quero ouvir, como forma de pagamento para minha admiração, fico de mal, não admiro mais.”
Fazer o que? Ossos do ofídio, baby!  A escritora vem de um tempo, no qual a pessoa se quisesse gostar, gostava. Se quisesse admirar, admirava, e a pessoa gostada e admirada não se tornava refém disso. Um tempo em que artista era artista, celebridade era celebridade.
Nos tempos supermodernos aplicam-se os pressupostos celebrativos a qualquer pessoa que tenha o mínimo de visibilidade e ela é esvaziada da condição humana para transformar-se em alguém que atende às vontades do público soberano. A escritora acha que isso é loucura e ela ainda não enlouqueceu.

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