O Preconceito está em nós

Na sala de aula, assim como em qualquer outro ambiente, ocorrem situações de discriminação. É necessário reconhecê-las e discuti-las

Por Luis Carlos de Menezes, da UOL

A escola não é uma ilha, e entre alunos e professores estão presentes as mesmas relações de uma sociedade que estimula o individualismo e vê a solidariedade como se fosse um favor e a tolerância como covardia. A nós, educadores, usualmente defensivos, cabe uma posição mais consciente e deliberada contra essa cultura de agressividade, começando por identificar e combater atitudes que comprometem o convívio escolar e envenenam a vida social.

O preconceito não é só coisa de grupos sectários, como skinheads, pois surge, às vezes, da tola pretensão de valorizar a si mesmo ao depreciar diferentes escolhas religiosas, estéticas, desportivas ou musicais. Ele pode se manifestar, às vezes, disfarçado de humor, como na humilhação – ou bullying – de um estudante por seu sotaque regional ou pela forma como se veste. Uma escola que admite posturas como essas, por não reconhecer seu potencial destrutivo, abre caminho para discriminações de etnia, idade, origem, gênero e classe.

Muitas formas de intolerância resultam de visões e superstições presentes nas relações familiares e afetivas e de valores disseminados na sociedade. Em oposição a isso, a escola deve estimular crianças e jovens a identificá-las em piadas, notícias, torcidas esportivas, filmes de ação e novelas e discutir suas origens sociais e históricas. A atividade é adequada a diferentes disciplinas.

As práticas de segregação por condições de vida, preferências ou deficiências também podem ser identificadas e debatidas por meio da dramatização de reações possíveis de jovens e de educadores diante da imagem de um trabalhador urbano saindo imundo de um bueiro ou do sorriso bondoso de uma criança com síndrome de Down. Ao mostrar como os preconceitos são usualmente reforçados por constrangimentos ou revelados pela intolerância, em situações que demandariam compreensão e solidariedade, questionam-se atitudes de professores na sala de aula, por exemplo, ao tratar com alunos que têm diferentes ritmos de aprendizagem.

É difícil não discriminar, pois, ao generalizar experiências pessoais, já prejulgamos. Mais complicado ainda é reconhecer como desfiguramos traços de caráter e sentimentos pessoais ao descrever quem estranhamos. Ao nos referirmos a jovens da escola privada como patricinhas e aos da escola pública como pivetes, por exemplo, estamos revelando nossa própria grosseria e insensibilidade pelo simples uso desses termos – e é bom ter consciência disso.

Os julgamentos preconceituosos, no entanto, nem sempre são definitivos, assim como as afirmações científicas. O que parecia bem compreendido há alguns anos, como a constituição e a expansão do Universo, hoje apresenta vários pontos obscuros. Por isso, valorizar a variedade de culturas, o questionamento dos saberes e a necessidade do contraditório é o que devemos fazer sem propagar outro mito, o da neutralidade absoluta. A escola é um espaço de diversidade privilegiado para aprender a resolver conflitos e saborear a graça do convívio com a diferença. É assim que ela combate os preconceitos.

Luis Carlos de Menezes

Físico e educador da Universidade de São Paulo, vê os preconceitos como adversários da cultura em geral e da ciência em particular.

 

Educar sem Rótulos

Fonte: Uol

Por Amanda Polato

 

Os juízos de valor são usados no convívio em classe, nas relações com a família e até nas avaliações, mas é melhor fugir dessa prática

Manuela é a desinibida da turma, falante e agregadora. Maria, Ana e algumas outras são candidatas a princesinhas, sempre muito arrumadas. Já Rodolfo é um pestinha, vem de uma família complicada e não se desgruda dos repetentes. Corriqueiro entre professores e gestores escolares, o hábito de rotular estigmatiza as crianças e as desestimula a aproveitar uma das grandes vantagens do ambiente escolar: a liberdade para experimentar papéis e posturas. “Entre os menores, alguns estudantes nem sabem os nomes direito porque só escutam apelidos”, diz Andréia Cecon Rossi, diretora da EMEI Curió, em Itatiba, a 89 quilômetros de São Paulo.
Quando adjetivos positivos são usados, o agraciado acaba se convencendo de que é superior – e seus colegas de que dificilmente o alcançarão. “Além de tirar a autocrítica do sujeito, ele pode se tornar incapaz de refletir sobre as próprias ações, deixando de se arriscar naquilo em que não se sairia tão bem. Isso quando não fica incapaz de lidar com as frustrações”, alerta Sonia Losito, doutora em Psicologia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

No caso das famas negativas, o mais provável é que o estudante se sinta preso ao juízo de valor. Chamar um aluno de burro é o mesmo que dizer que ele não se adapta ao mundo escolar. “As crianças não são iguais. Têm ritmos, jeitos e modos diferentes de aprender. Mas todos são capazes”, defende Divani Nunes, formadora do Grupo de Apoio Pedagógico da rede municipal de Taboão da Serra, na Grande São Paulo.

Em tese, os rótulos não são exclusivos do ambiente educacional. A antropóloga Ana Luiza Carvalho da Rocha, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, diz que faz parte da cultura humana julgar os outros com base nos próprios padrões e códigos éticos e morais. Eliana Braga Atihé, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, complementa o raciocínio: “A classificação reflete a tendência de nossa identidade de se defender da diferença que o outro representa. Rotular é enquadrá-lo numa categoria que o reduza e simplifique para nós. É preciso um esforço para se afastar dos referenciais próprios e observar a beleza da diversidade”.

 

Turma marcada, relações estremecidas

Na escola, no entanto, essa prática é mais grave porque os alvos são seres em desenvolvimento e dão mais valor a julgamentos. “Somos suscetíveis ao olhar do outro e vamos formando nossa identidade em meio à interação social. O que penso de mim é influenciado pelo parecer das pessoas”, argumenta Sonia. “Se, ao ser educada, uma criança recebe reflexos negativos, terá uma forte tendência a se pensar como alguém menos valioso.”

O convívio em sala de aula pode ficar desequilibrado dependendo das atitudes dos professores. “Quando você critica publicamente um aluno e entrega de bandeja para a turma apelidos prontos, essa criança pode ficar estigmatizada e ser rejeitada”, comenta Sonia Losito.

Há um estímulo, ainda que não intencional, à prática do bullying – todo tipo de agressão física ou psicológica que ocorre repetida e intencionalmente para ridicularizar, humilhar e intimidar as vítimas. “É impossível discutir ética na escola se o convívio é desrespeitoso. Como esperar que alguém se desenvolva num ambiente assim?”, aponta Fátima Polesi Lukjanenko, especialista em Educação Moral e secretária de Educação do município de Itatiba.

Eliana Atihé reconhece que essa postura preconceituosa dá a falsa sensação de segurança tanto aos adultos como aos mais jovens. “Ao rotular, o professor muitas vezes está se defendendo dos alunos que representam uma ameaça por questionar sua autoridade, despertar sua insegurança, resistir a seu gesto formador. E é comum fazer isso sem dó nem piedade.” Segundo ela, adultos alçados à condição de guias (e não apenas de transmissores de conteúdos) devem estar mais conscientes dos gatilhos que ativam esse mecanismo defensivo que empobrece as relações. E, por isso, precisam estar dispostos a compreendê-los e ultrapassá-los para tratar a todos com respeito.

A antropóloga Ana Luiza Rocha afirma que o estigma reforça também as estruturas de poder. “A maioria dos educadores usa juízos de valor para marcar seu lugar e mostrar às crianças que elas têm de ocupar outra posição.” Ela cita um exemplo esclarecedor: “Quantos docentes chamam a família dos alunos de ‘desestruturadas’? Pouquíssimos sabem que esse termo nem sequer existe na perspectiva sociológica”.

Situações inadequadas também são rotineiras com alunos com deficiência. O mais corriqueiro nas escolas atualmente é o uso de diminutivos, como “mudinho” e “coitadinho”. O consultor Romeu Kazumi Sassaki diz que “o tratamento deve ser de igual para igual, sem exageros ou atitudes paternalistas”.

Outro problema é quando, em situações de aprendizagem, os estudantes são “estigmatizados por causa da deficiência”, como destaca a neurolinguista Michelli Alessandra da Silva, da Unicamp. “Muitas vezes, os problemas que fazem parte do próprio processo de aquisição da escrita, por exemplo, são vistos como decorrentes de alguma patologia”, aponta. Essa postura sugere que as crianças com deficiência são incapazes de acompanhar a turma regular, o que é um grande erro, como explica Maria Tereza Mantoan, também da Unicamp. “Todos os alunos são capazes de aprender segundo suas capacidades.”

Quando os adjetivos estão relacionados à criminalidade, o desafio é igualmente espinhoso. A diretora Talma Suane, da EM República do Peru, no Rio de Janeiro, relata um processo de exclusão comum: unidades que, de forma velada, recusam a matrícula de alunos com histórico relacionado à violência.

 

O poder da transformação
Não é fácil parar de usar rótulos e lidar bem com a diversidade em sala de aula. Mas é possível. A professora Maria Elisa Perceval, da EMEF Maria José Luizetto Buscarini, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, é uma prova disso. Depois de 20 anos em sala de aula, ela começou a olhar para os alunos de maneira diferente. A mudança começou graças a um projeto de reforço escolar implantado em toda a rede do município.

“Encontrei estudantes multirrepetentes que não sabiam ler e escrever. Eles já chegavam estigmatizados e sem confiança em si mesmos”, relata a professora. Agora, os primeiros dias de aula são de aproximação, avaliação inicial e identificação das necessidades de cada um para elaborar estratégias diferentes. “O trabalho mais focado permitiu resultados muito bons: 80% da turma atingiu os objetivos de aprendizagem e a meta para este ano é 100%”, conta.

Um dos alunos de Elisa era chamado de “burro” pelo pai e pelos colegas de sala porque tinha 15 anos e não estava alfabetizado. Pela família, ela ficou sabendo que até um médico havia sugerido que o garoto fosse para uma escola especial (ninguém produziu um laudo atestando problemas patológicos e a professora continuou seu trabalho). “Em apenas um ano, o menino obteve avanços muito importantes e já escreve em letra de forma”, diz. Segundo Elisa, foi difícil convencer os familiares de que ele podia aprender e também educar as crianças para respeitar o garoto, mas tudo isso já virou realidade.

Antes dessa guinada, Elisa e outros colegas tinham atitudes bem diferentes. Todos se queixavam de ter estudantes “atrasados”. Ela lembra: “Eu lamentava o número de repetentes no começo do ano. Nem conhecia os alunos, mas eles já viravam um ‘problema’, eram todos rotulados”. Só depois de alguns anos, conta, percebeu que esses jovens sempre iam, “quase automaticamente”, para o fundo da sala por não se sentirem parte da turma. “Tenho muito a caminhar, mas minha visão mudou. Meu olhar está atento e individualizado. Procuro perceber o ritmo de cada um.”

 

Avaliação, terreno fértil para os rótulos

A diretora conta a história de uma garota que chegou à escola com a fama de ladra. “Ninguém deixou de acreditar no potencial dela. Depois de conversas e uma parceria estreita com os pais, a menina começou a confiar no corpo técnico e em si mesma. Nunca mais ninguém falou em furtos”, relata. Francisco Ramos de Farias, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, completa: “Acredita-se que esses jovens são perigosos e vão ser um fracasso. Não se aposta na possibilidade de que eles façam outras escolhas”.

Mas não é apenas no convívio que os problemas aparecem. Relatórios escolares e avaliações são muitas vezes permeados de estereótipos. O maior problema, dizem os especialistas, é que falta acompanhamento atento de alguns educadores, que não observam o comportamento da turma e, na hora de fazer anotações, recorrem a essa “muleta”.

A troca do verbo “estar” por “ser” é um dos desvios mais frequentes. Na hora de registrar as especificidades da turma, por exemplo, o docente diz que o estudante “é fracassado” – em vez de observar que ele “teve um desempenho ruim em determinado momento”. Com o rótulo, o professor não olha para a complexidade da situação. “Quando um aluno vai mal numa prova, isso pode ter sido provocado por muitos motivos, inclusive uma falha da metodologia de ensino. Mas é sempre mais cômodo culpar a criança”, afirma Eunice Maria Lima Soriano de Alencar, professora de Psicologia da Educação da Universidade Católica de Brasília. Benigna Maria de Freitas Villas Boas, professora de Avaliação da Aprendizagem da Universidade de Brasília, complementa, argumentando que o rótulo incide mais sobre o comportamento. “Isso não cabe aos professores. O papel deles é avaliar as aprendizagens, identificando o que os alunos já sabem, o que precisam aprender e que meios são necessários para atingir os objetivos.”

Benigna alerta ainda para outro entrave. “Os registros passam por coordenadores e outros professores. A imagem da criança pode ficar negativa aos olhos dos outros”, ressalta a especialista, lembrando que as atitudes dos estudantes mudam com o tempo e de acordo com a situação. Os jovens podem agir de maneiras diferentes, dependendo da turma ou escola em que estão e do educador que têm. “A postura é relacional, varia em ambientes distintos”, afirma.

 

As famas já trazidas de casa devem ser combatidas na escola
Outro momento importante em que você precisa ter muito cuidado é na relação com os pais. É comum uma mãe entregar o filho para a professora e logo implorar: “Vê se dá um jeito nele. É incontrolável.” Em vez de incorporar os rótulos dados pelas próprias famílias, a escola tem de combatê-los. “A criança mal consegue expressar suas capacidades porque já é desqualificada perante os outros”, diz Eunice Alencar. “É preciso permitir que ela tenha também experiências boas.” Se um jovem tem problemas de relacionamento em casa, isso não significa que manterá essa postura na escola.

A orientadora educacional Haldia Mary Matias, da EMEF Mariana Teixeira Cornélio em São José dos Campos, a 94 quilômetros de São Paulo, afirma que acreditar nos rótulos levados pelas famílias é o mesmo que se recusar a conhecer os alunos de perto. “O professor deve buscar compreender as reais dificuldades e necessidades das crianças.” De acordo com ela, um bom diálogo é capaz de fazê-las perceber o impacto que essas atitudes podem ter na vida dos menores.

Muitos pais, aliás, deixam de frequentar as reuniões escolares porque só ouvem rótulos negativos. Segundo a formadora Divani Albuquerque, as reuniões com os pais devem ser momentos de relatar os processos de aprendizagem, os avanços e os pontos a melhorar sem usar adjetivos relacionados a comportamentos. “Os familiares passam a entender o que o filho está aprendendo.”

 

 

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