O que a origem da família pode nos ensinar sobre o patriarcado

Como estudantes de Direito aprendemos que o mundo jurídico não se faz apenas de leis, normas, princípios, súmulas e jurisprudências. Os legisladores, ao fundamentarem decisões, valem-se não apenas do ordenamento positivado mas também de todo o contexto social, profundamente enraizado em nosso cotidiano: educação, cultura, fatores econômicos, etc. É por isso, que mesmo em um sistema jurídico tão falho quanto o brasileiro, de tantas brechas e remendos, encontramos decisões justas e igualitárias, como por exemplo a decisão do STF a favor da união estável dos homoafetivos.

Entretanto, sabemos que infelizmente ainda temos muito a conquistar e, para alcançar um convívio harmonioso entre as pessoas como o art. 5° da Constituição Federal expressa, faz-se necessário uma quebra de valores e paradigmas, que tanto nos acorrenta a uma vivência brutal e exploradora intrínseca ao modo de viver, como a cultura do estupro, o favorecimento de certas concepções religiosas, a criminalização do aborto, os descasos dos sistemas penitenciários, etc.

Em uma de minhas aulas preferidas, eis que a professora de Ciências Políticas destaca um precioso livro que me ajudou a entender muito mais os absurdos atuais do sistema patriarcal, o qual estamos obrigados não apenas a conviver e sim acreditar como algo “natural” na evolução da humanidade. O livro chama-se ‘A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado’, um clássico do escritor Friederich Engels.

Ao estudar as origens da família, Engels e outros autores que o precederam — Bachofen, MacLennan e Morgan — tiveram a peculiaridade de levantar dados sobre um tema que era até então incontestável, e é por isso que seus trabalhos se mostraram tão revolucionários quanto ousados. Até o começo de 1860, não havia quem se debruçasse sobre a história da família visto que o tema já era abordado de maneira satisfatória pelos livros de Moisés, onde a família patriarcal sempre existiu e não havia mudado de curso em nenhum outro momento da história (um pensamento que perdura até os dias de hoje, convém ressaltar).

Quando nos conformamos com uma “moldura” de um sistema que é “universal” e traz diretrizes das formas de ser, agir, pensar e se comportar estamos involuntariamente nos posicionando de forma a perpetuar injustiças aos sujeitos que não se adequam à forma imposta, e ainda permitindo nos limitar a inúmeras possibilidades que deixam de existir para que aquela moldura social possa perseverar, mantendo a dita “paz” e “harmonia” do Estado soberano. Quem sai perdendo não são apenas “os que não se encaixam”, mas toda a população que tem sua vida guiada por formas opressoras e intimidantes, pelos que possuem poder de subjugar através da força, do medo, dos discursos de ódio, das deturpações das informações e dos meios de comunicação, sendo tratados como “massas”, e não seres individuais, confinados à escravização pela parte dominante das relações sociais.

Ao ler ‘A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado’ ficou claro para mim que o sistema patriarcal é uma fase das relações familiares, não sendo em si unanime e universal. Em 1861, os estudos mostram que os homens selvagens — e aqui há de se fazer uma ressalva com o termo “selvagem”, ao qual explicarei mais adiante — viviam em uma relação de promiscuidade sexual, sendo impossível estabelecer a paternidade dos filhos, de maneira que só era possível aos povos antigos contar seus descendentes a partir da linhagem materna, única forma de ter certeza a respeito da filiação, fazendo com que o direito materno assegurasse às mulheres elevado grau social, chegando ao domínio feminino absoluto: a ginecocracia.

Ao fugir da padronização histórica, Engels faz uma nova classificação da pré-história expurgando a ideia de seres humanos débeis e inábeis que perduram no imaginário leigo das pessoas. Dividiu os períodos por meio das formas de produção, instituindo o Estado Selvagem: criação da linguagem, alimentação a base de peixes, artefatos do período paleolítico, invenção do arco e da flecha; o que vincula-se a experiências adquiridas no mundo hostil e faculdades mentais bastante desenvolvidas; a Barbárie: período dos artefatos em cerâmica, domesticação de animais, cultivos de plantas através de irrigações e arados puxados por animais, uso do tijolo e pedras na construção de verdadeiras fortalezas, fundição de ferro e invenção da escrita; e, por fim, a Civilização: onde surgem novas formas de trabalhar os produtos naturais, a indústria e a arte.

É no Estado Selvagem que surge e nasce a família, evidentemente, não como a conhecemos hoje. Segundo Morgan: “A família é um princípio ativo. Nunca permanece estacionária, mas passa de uma forma inferior a uma forma superior, à medida que a sociedade evolui (…)”. (pág. 45)

No período selvagem ocorriam os casamentos por grupos, que nada mais eram do que a prática de poligamia e poliandria (união em que uma só mulher é ligada a dois ou mais maridos ao mesmo tempo) ao mesmo tempo, fazendo com que os filhos de uns e outros fossem comuns ao grupo. Dessa maneira a mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem igualmente a todas as mulheres. Existiam casas grandes em que todos moravam juntos, as mulheres e os maridos junto com os filhos de ambos;. Neste convívio de grupos exclui-se a prática da mulher como escrava do homem. Tem-se a imagem de uma mulher livre e muito estimada, visto que não eram “poupadas” ao trabalho e relegadas às “tarefas simples” como costumamos ouvir hoje em dia. Na atualidade, a mulher civilizada que é excluída de todo trabalho efetivo possui situação social inferior àquela mulher selvagem que trabalhava recebendo o respeito devido ao seu esforço refletido na organização das classes.

Bachofen deixa muito claro em suas conclusões que os povos selvagens não viviam em um estado de pura promiscuidade sexual sem norma alguma. A literatura clássica antiga nos traz vestígios de uma prática muito anterior a monogamia em que os gregos e asiáticos conviviam em liberdade sexual sem necessariamente violar a moral estabelecida.

Essas provas são encontradas com os gregos, onde o direito materno confere uma passagem para a monogamia e o direito paterno. Como exemplo, há a Epopéia de Oréstia, a qual tentarei aqui descrever de forma resumida para não causar confusão, mas o reflexo religioso do desenvolvimento das condições humanas é incontestável.

Nesta passagem, diz-se que Climnestra era esposa de Agamenon e esta termina matando seu marido em razão de amar outro homem que seria seu amante. Entretanto, o filho do casal — Orestes — para vingar o pai termina por matar Climnestra, cometendo o mais grave dos pecados até então: o matricídio. Assim, as Erínias (seres protetoras do direito materno), perseguem Orestes pelo grave crime que cometeu, e então, numa passagem dos tempos antigos aos tempos atuais, dois novos Deuses surgem pra intermediar o conflito: Apolo e Atena.

Apolo intervém levando o caso a Atena que se posiciona como juíza e ao ouvir Orestes este alega em sua defesa que sua mãe cometeu dois crimes, visto que matara seu marido e pai de seu filho, por isso era injusto que as Erínias o perseguissem. A resposta por sua vez à defesa de Climnestra seria de que ela não possuía vínculos de sangue com o homem que matou, por isso não era crime que merecesse o castigo das Erínias. Atena, para resolver o conflito, submete o caso ao tribunal ateniense gerando um empate de votos pela absolvição e condenação de Orestes, sendo o último voto o dela mesma, que favorece o réu fazendo, o direito paterno prevalecer sobre o direito materno. Dessa forma, as Erínias ao obedecerem os Deuses da nova geração (Atena e Apolo) admitem ter que assumir uma nova postura visto à ordem das coisas. É uma clara visão da transformação das relações matriarcais que agora começavam a criar vínculos nas relações sociais, inclusive na relação dos direitos.

E, como e para que uma ordem social das coisas pode mudar de uma geração para outra, transformando um sistema matriarcal em patriarcal? A resposta é simples: com a definição do privado.

Antes de tratar da fase monogâmica propriamente dita, Engels destaca a fase da família pré-monogâmica, que antecede o casamento apenas de pares, que ocorreu concomitantemente ao casamento por grupos. O casamento pré-monogâmico assemelha-se a monogamia pelo fato do matrimônio ser apenas entre um homem e uma mulher, contudo ao homem fora do casamento a poligamia persiste, enquanto a poliandria é extinta, sendo cobrado das mulheres a mais rigorosa fidelidade enquanto durar o casamento. O vínculo matrimonial contudo pode ser dissolvido por ambos, enquanto os filhos são exclusivamente das mães.

A fase monogâmica, propriamente dita, nasce decorrente da domesticação de animais, gerando riqueza, o que até então não era reconhecida aos selvagens aflorando junto à barbárie. O homem agora não precisava mais caçar pois a ele pertencia as manadas de cavalos, camelos, bois, carneiros, porcos, cabras, etc. que se desenvolviam através da vigilância e cuidados, fornecendo alimentação. Com tal experiência da criação de animais e cultivo agrícola o trabalho fora dividido entre a família, cabendo ao homem providenciar alimentos, assim como garantir a propriedade não só dos animais e plantas, mas também dos seus meios de produção.

O homem agora tornava-se proprietário da fonte de alimento e trabalho, este último que mais tarde se configuraria também no escravo.

Neste novo padrão de trabalho não havia mais cabimento para a linhagem ser contada através da mulher. A ela agora era necessário a fidelidade. O homem agora possui a terra e tudo que nela há, precisando de descendentes confiáveis e não da mulher. O direito materno foi supresso, segundo as palavras de Engels: foi a derrota do sexo feminino na história universal.

“A mulher foi degradada, convertida em servidora, em escrava do prazer do homem e em mero instrumento de reprodução. Esse rebaixamento da condição da mulher, tal como aparece abertamente sobretudo entre os gregos dos tempos heroicos e mais ainda dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocado, dissimulado e, em alguns lugares, até revestido de formas mais suaves, mas de modo algum eliminado”. (pág. 75)

Com a necessidade de assegurar paternidade e, consequentemente, a fidelidade da mulher, esta é entregue ao poder do homem, podendo este fazer o que bem entender, inclusive lhe conferir a morte.

Estranho como isso tudo soa atual aos nossos dias, não é verdade? E mais estranho ainda é isto não estar descrito nos livros de história. Lembro da minha fase no ensino médio (hoje, oitavo ano) em que a professora abria o livro e nos ensinava sobre a pré-história de homens vivendo em cavernas e comendo carne queimada,para logo em seguida estudarmos um dos maiores legados na história da humanidade: A Grécia! E toda sua democracia, militarismo, agricultura… mas pera aí… como foi que surgiu tudo isso?

Aprendi muito com F. Engels, gostaria de escrever muito mais e a respeito de todas as civilizações fantásticas que ele descreve em seu livro (me prendi aqui apenas nos fatos narrados mais importantes), mas de certa forma seria estragar a surpresa para quem quiser o ler. Porém, é importante conhecermos o passado, pois como diria Elis Regina: “O que foi feito é preciso conhecer, para melhor prosseguir”.

Referência: ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Editora Escala, 3° edição.

Texto de Karollyna Alves
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Karollyna Alves é de Recife, gosta de história e seu primeiro texto publicado nesse blog foi sobre a Marcha das Vadias de Recife em 2011

 

Na época do Brasil colonial, lei permitia que marido assassinasse a própria mulher

 

Fonte: Blogueiras Feministas 

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