Quase acabando.” Esse foi o mantra que repetia pelos corredores da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30, em Belém. Mas quase acabando como? Com quais decisões? E, principalmente: quem fica pelo caminho? Mas acabou.
As negociações do novo Plano de Ação de Gênero (GAP) da UNFCCC atravessaram dias de tensão extrema. O que se via, dentro e fora das salas, era mais do que divergência técnica: era uma disputa simbólica e política sobre quais corpos e identidades têm o direito de existir nos documentos que orientarão a política climática global pelos próximos anos, e quais seguem sendo sistematicamente apagados.
De um lado, países e organizações defendendo um plano condizente com realidades interseccionais: gênero, raça, território, cuidado, saúde e justiça climática. De outro, a tentativa persistente de esvaziar o texto, podar conceitos, limitar responsabilidades e ignorar recomendações construídas ao longo de meses por sociedade civil, especialistas e negociadores.
Foi nesse cenário de disputa que emergiu um dos conflitos mais graves desta COP: a resistência explícita de União Europeia, Reino Unido e Austrália à inclusão de mulheres afrodescendentes no texto do novo GAP.
A nota do Geledés – Instituto da Mulher Negra nomeou o problema sem rodeios. Denunciou a contradição central: são justamente os países que mais discursam sobre direitos humanos, igualdade de gênero e justiça climática que atuaram para bloquear a menção a mulheres afrodescendentes — um grupo historicamente na linha de frente do racismo ambiental, das desigualdades de gênero e dos impactos da crise climática.
Geledés lembrou o óbvio que parece ainda indigesto para parte dos negociadores: o Brasil abriga o maior número de pessoas negras fora da África (56% da população do país). No mundo, somos cerca de 200 milhões. Ainda assim, quando se trata de incluí-las no regime climático internacional, o reconhecimento vira moeda de troca.
A pergunta ecoa: por que atores tão vocais na defesa de direitos humanos recuam justamente quando quem pede reconhecimento são mulheres negras? A resposta atravessa séculos. Não é técnica. É política. É colonial. É mais um capítulo perverso do colonialismo que chegou de caravelas às Américas e que, ainda hoje, regula quem merece existir nos textos multilaterais.
E então veio o resultado — e ele importa
Apesar das resistências, pressões e apagamentos tentados ao longo da COP30, o texto final do Plano de Ação de Gênero foi aprovado com a menção a mulheres afrodescendentes. É um marco histórico.
Pela primeira vez, o GAP reconhece explicitamente a necessidade de incluir mulheres afrodescendentes em suas atividades. É simbólico, é político, é jurídico — e abre portas que antes estavam trancadas.
Em nota oficial, Geledés afirmou que considera: “histórico e importante para a política internacional do clima que o texto final do Plano de Ação de Gênero inclua a menção a mulheres afrodescendentes na COP30. […] As menções são fundamentais para garantir maior participação, reconhecimento e efetiva garantia de direitos. O plano aprovado sinaliza novos tempos para os direitos humanos dentro da UNFCCC.”
Não é um texto perfeito. A implementação precisa se apoiar em avanços na dimensão aprofundada de direitos humanos. Mas é um avanço que muda a correlação de forças dentro da UNFCCC. O reconhecimento existe, está escrito, está público e agora deve ser cobrado.
O contraste histórico: Década Internacional para Afrodescendentes
A conquista do GAP ganha ainda mais peso porque ocorre exatamente na inauguração da Segunda Década Internacional para Afrodescendentes (2025–2035).
No momento em que a ONU reconhece a urgência de justiça racial, reparação e desenvolvimento, o regime climático hesitou até o último minuto em escrever a palavra “afrodescendentes”.
Durante a COP30, a Gênero e Número, em parceria com Oxfam Brasil e o Observatório da Branquitude, lançou o Sumário Executivo Crise Ambiental e Climática: Mulheres Negras na Linha de Frente. O estudo expõe como raça e gênero atravessam o acesso à água potável, saneamento, coleta de lixo e segurança alimentar.
Mostra também o silêncio estatístico: o Censo de 2022 não cruza raça e gênero em dados de saneamento; e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) não cruza raça e gênero em informações sobre segurança alimentar.
Mesmo assim, são as mulheres negras que criam alternativas de cuidado, sobrevivência e resistência nos territórios: hortas comunitárias, redes de reciclagem, gestão da água, iniciativas que apontam caminhos concretos para políticas públicas mais justas.
A COP acaba, o colonialismo permanece, mas as desigualdades persistem e atravessam mulheres afrodescendentes em todo o mundo. A luta segue viva e estamos atentas. Não podemos mais perder nada dos ganhos difíceis que tivemos.
Temos avanços arrancados na força, na política e na resistência. E é assim que se muda um regime internacional: palavra por palavra, disputa por disputa, até que a política climática finalmente reconheça quem sempre esteve na linha de frente, e quem nunca mais aceitará ser invisível.

Mariana Belmont – Jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra, faz parte do conselho da Nuestra América Verde e da Rede por Adaptação Antirracista. E organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023).