O que nos ensina Shakespeare sobre tirania

Livro de cabeceira de Angela Merkel nos diz como lutar contra autoritarismos de hoje

por Thiago Amparo no Folha de São Paulo

Thiago Amparo – Folha de São Paulo

“Baseando-se na indiferença à verdade, falta de vergonha e autoconfiança hiperinflacionada, o demagogo tagarela entra em uma terra de fantasia —’Quando eu for rei, como rei serei’— e ele convida seus ouvintes a entrar nessa mesma terra da fantasia com ele. Nela, dois e dois não são quatro.”

Não, esta não é uma análise política dos tempos atuais, tampouco uma descrição de governos populistas como são os de Maduro, Bolsonaro e Trump. Ao menos, não diretamente.

Este é um trecho do livro “Tirano: Shakespeare sobre Política” (ainda sem tradução ao português) de Stephen Greenblatt, professor de Harvard e um dos maiores especialistas do mundo no autor inglês.

Nesta semana, Angela Merkel, chanceler alemã de centro-direita, foi fotografada lendo este livro em suas férias na Itália. Pude ler este livro em uma tacada só durante um voo longo há alguns meses.

Como William Shakespeare, Greenblatt utiliza do artifício de falar do passado como forma de compreender o presente.

Stephen Greenblatt, do livro “Tirano: Shakespeare sobre Política”. Um dos maiores especialistas no autor inglês Stephen Greenblatt, do livro “Tirano: Shakespeare sobre Política”. Um dos maiores especialistas no autor inglês – 2018.09.27 – AFP/Folhapress

A fim de evitar possíveis inimizades entre o círculo político de sua época, Shakespeare garantia ao menos um século de distância entre as histórias que contava em suas peças e o seu tempo presente.

Mesmo não sendo a História (ou o teatro) uma bula de remédio, como nos alerta a historiadora Lilia Schwarcz em seu mais recente livro, Shakespeare, pelas lentes de Greenblatt, nos ajuda a navegar os tempos sombrios atuais.

Como pensa um tirano?

Com base em “Ricardo 3º” e “Macbeth”, Greenblatt disseca a personalidade do tirano: “a autoestima ilimitada, a violação da lei, o prazer em infligir dor, o desejo compulsivo de dominar”.

“Ele é patologicamente narcisista e supremamente arrogante. (…) Ele espera lealdade absoluta, mas ele é incapaz de gratidão. Os sentimentos dos outros não significam nada para ele. Ele não tem graça natural, nem senso de humanidade compartilhada, nem decência,” escreve Greenblatt.

O que alimenta a personalidade tirânica, portanto, é arrogância de se saber obedecido, combinada com o sadismo de presenciar o sofrimento alheio. É eleger um herói nacional que torturou mulheres grávidas.

É colocar crianças migrantes em jaulas na fronteira da maior potência mundial. É jogar tanques do Exército contra manifestantes. E fazê-lo com a arrogância de se achar certo.

Se são sádicos, por que tiranos nos atraem? Shakespeare nos diz o porquê. Em parte, por seu apelo populista. Na peça “Henrique 4º” (Parte 2), Shakespeare, para Greenblatt, explica alguns elementos dos populismos de hoje.

Primeiro, seu desprezo pelas regras do jogo político. “A primeira coisa a fazer, matemos todos os advogados”, escreve Shakespeare na voz de um membro da multidão.

“Minha boca vai ser, daqui em diante, o parlamento da Inglaterra”, diz outro rebelde. Segundo, por seu descaso pela educação. O crime mais grave de Saye foi promover uma cidadania culta – de pessoas que lessem livros, escreve Greenblatt.

Lembro aqui de Dostoievsky, em “Os Demônios”, onde se lê que o passo fundamental para o autoritarismo seria “rebaixar o nível da educação, das ciências e do talento. (…) A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas.” Não há espaço para ciência, livros ou sequer verdade em uma sociedade tirânica.

Há diversos tipos de pessoas que, de um jeito ou outro, permitem a tirania.

De um lado, os que se mantêm em silêncio. Os que se abstêm. “Não discutirei o que trás isto se esconde. Ficarei eu inocente do intento.”, diz Brakenbury diante de uma injustiça em “Ricardo 3º”.

De outro, aqueles que se sentem os donos de toda a verdade. “A verdade aparece nua ao meu lado”, diz o Duque de York em Henrique 6º. “O que importava era a sua falta de vontade de fazer compromissos, a certeza beligerante sentida por cada um de que sua posição, e apenas sua, era a única possível.”, escreve Greenblatt.

Quem nos salvará? Greenblatt nos lembra com base em “Macbeth” que em tiranias há aqueles que, habitando o círculo do poder, percebem a loucura de seu governante.

E, mais importante, há nós, cidadãos comuns. Nós, 70% que não somos a favor de investidas autoritárias. Para Greenblatt, “Shakespeare acreditava que os tiranos acabariam fracassando, derrubados por sua própria maldade e por um espírito popular de humanidade que poderia ser suprimido, mas nunca completamente extinto.”

Shakespeare nunca deixou de notar “as pessoas que permaneciam caladas quando eram exortadas a gritarem seu apoio ao tirano, ou ao criado que tentava impedir seu mestre de torturar um prisioneiro, ou ao cidadão faminto que exigia justiça econômica”, escreve Greenblatt.

Aqui mora nossa esperança contra tiranos. Em nós mesmos.


Thiago Amparo

Advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.

+ sobre o tema

Musk sugere anistia para policial que matou George Floyd

O bilionário Elon Musk sugeriu repesar a condenação da...

Redução da jornada de trabalho ajudaria quebrar armadilha da baixa produtividade?

Exemplos de países desenvolvidos não dizem muito sobre qual seria...

A escalada das denúncias de quem trabalha sob calor extremo: ‘Imagina como ficam os trabalhadores soldando tanques’

Na segunda-feira (17/2), enquanto os termômetros de São Paulo batiam...

Governo divulga ações para lideranças religiosas de matriz africana

O Ministério da Igualdade Racial (MIR) apresentou para lideranças...

para lembrar

A direita parlamentar parece ter perdido sua bússola moral

Com o objetivo de adular a extrema direita e...

Manuel Castells: ‘O povo não vai se cansar de protestar’

Sociólogo afirma que ausência de líderes é uma das...

Deputado Paulo Teixeira: Uma reforma para ampliar a democracia

Por Paulo Teixeira Artigo do deputado federal Paulo Teixeira...

Lula é a 33ª pessoa mais poderosa do mundo, diz ‘Forbes’

Fonte: BBC - O presidente Luiz Inácio Lula da...

O Congo está em guerra, e seu celular tem a ver com isso

A Guerra do Congo é o conflito mais mortal desde a Segunda Guerra Mundial, mas recebe bem menos atenção do que deveria —especialmente se comparada às guerras...

Debate da escala 6X1 reflete o trabalho em um país de herança escravista

A deputada Erika Hilton (PSOL-SP) protocolou na Câmara dos Deputados, nesta terça-feira (25), o texto da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que quer colocar fim à...

Não há racismo estrutural, e discriminação afeta brancos, diz governo Trump

O governo de Donald Trump considera que não existe racismo estrutural nos EUA e alerta que a discriminação é, de fato, cometida contra brancos. Numa carta escrita no dia...
-+=