O racismo na realidade brasileira e a inscrição da necropolítica

Ao invés de um país que favoreceria a participação política e o protagonismo juvenil nos contextos de alta vulnerabilidade, na realidade brasileira podemos notar que historicamente a violência estatal faz parte de sua dinâmica social. Por isso, precisamos refletir sobre o papel estatal e as interfaces que são produzidas no campo das práticas de segurança pública.

Por Maciana de Freitas e Souza, no Empório do Direito

Imagem: Pixabay

Nas palavras de Agamben, podemos perceber que há em curso na política ocidental: “(…) a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integrar o sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de exceção permanente (ainda que eventualmente não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos” (2004, p.13).

A proposição de Agamben, a violência soberana, é entendida como um processo presente no tecido social por meio de uma lógica do Estado movida por interesses econômicos e políticos que tem como função social determinar o controle destes sujeitos, que não têm ou nunca tiveram força contratual com as fontes produtoras (classe dominante) para “manutenção da ordem pública”. Desse modo, o enfrentamento da violência significa uma mudança substancial nas relações sociais e nas dinâmicas de poder.

Para compreendermos o sentido da categoria estado de exceção de que nos fala Agamben, o 13ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019[1], produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com auxílio do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, com dados de 2018, constatou que houve uma queda de 10% no número de assassinatos no Brasil no último ano, contudo as agencias policiais são as que mais produzem mortes em suas intervenções. Nas palavras de Bueno: “[n]o que tange à seletividade racial, o padrão de distribuição da letalidade policial aponta para a expressiva sobrerrepresentação de negros dentre as vítimas constituintes de cerca de 55% da população brasileira, os negros são 75,4% dos mortos pela polícia. Impossível negar o viés racial da violência no Brasil, a face mais evidente do racismo em nosso país” (2019, p.58).

O anuário apresenta outros números preocupantes, como: 11 a cada 100 mortes intencionais violentas são praticadas por forças policiais. Analisou-se também que 75,4% das vítimas são negros, um crescimento total de 19,6% em relação à 2017. Entendemos dessa forma que são muitos desafios para garantirmos os direitos sociais previstos constitucionalmente e que a organização do Estado reproduz o racismo estrutural por meio de suas práticas institucionais.

Em uma perspectiva crítica, Oliveira[2] apresenta que “a violência deixou de ser um ato impensado de barbárie para se tornar produto da razão, com o suporte de conhecimento científico e técnico” (Oliveira, 2017, p. 10). Desse modo, políticas de segurança repressivas passaram a ser adotadas, dificultando ainda mais os processos de organização e resistência aos níveis de expropriação dos direitos pela juventude negra. Tal processo, repercute na existência de espaços de exceção e da inscrição da necropolítica na dinâmica social.

Na ocorrência (cada vez mais repetida) de atos de perpetração de violências, como Mbembe[3] assinala, “o […] racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, este velho direito soberano de matar” (2018, p. 18). É importante notar que as pessoas negras estão em um maior contexto de violação de direitos e mais vulneráveis a sofrer violências diversas.

Nesse sentido, é preciso ressaltar que na realidade brasileira, em termos de direitos, o Estado tem atuado com respostas conservadoras no enfrentamento às expressões da violência, dificultando ainda mais as lutas por garantias de direitos. Borges[4], nesse sentido, considera que “[o] processo de exploração e do ciclo em que se estabelecem as relações neoliberais opera pelo extermínio dos grupos que não têm lugar algum no sistema, uma política que parte da exclusão para o extermínio” (Borges, p. 23, 2018). Desse modo, as ações em curso com o projeto neoliberal no que se refere as questões sociais demonstram como o Estado atua de maneira seletiva e muitas vezes arbitrária.

Dessa maneira, o horizonte ampliado continua o mesmo: a luta por uma sociedade em que as pessoas possam conviver em liberdade e no exercício de seus direitos. Embora signatário dos principais tratados internacionais de direitos humanos, o Brasil ainda caminha lentamente no desenvolvimento e implementação de políticas aos grupos socialmente mais vulneráveis. É preciso, portanto, que sejam criadas ações com vistas a construção de respostas concretas no campo da proteção social e no enfrentamento a violência em detrimento de medidas populistas e de disciplina para o controle punitivo.

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