Há momentos em que o silêncio não é apenas omissão, mas cumplicidade. E o que aconteceu com Milton Nascimento, nosso Bituca, na cerimônia de premiação do Grammy é um desses momentos que exigem de nós mais do que um suspiro de indignação. Porque o que foi feito não foi apenas um desrespeito inominável a ele; foi um ataque à cultura, à história e à dignidade de um povo que o tem como um de seus maiores tesouros.
Milton Nascimento, o homem que atravessou o hemisfério para estar presente na cerimônia, foi tratado como um estranho no lugar que deveria ser seu por direito. Aos 82 anos, lendário e com uma carreira que atravessa décadas, Bituca não teve reservado um assento na área dos artistas e convidados.
E o detalhe é que ele já recebeu esse prêmio no passado e era um dos indicados na categoria de Melhor Álbum de Jazz Vocal. Enquanto isso, sua parceira de álbum, Esperanza Spalding, uma talentosa cantora de 40 anos, estava lá, confortavelmente acomodada. Não se trata de diminuir o brilho de Esperanza, mas de questionar como um ícone como Milton foi reduzido à invisibilidade em um evento que deveria honrar sua contribuição à música mundial.
Esperanza levou uma placa com o rosto de Bituca e fez uma postagem na sua rede social lamentando sua ausência. Para uma estadunidense, um gesto único de solidariedade, uma vez que a comunidade negra do país se calou, mostrando, mais uma vez, a falta de solidariedade completa conosco, negros do Sul.
Contudo, se Esperanza tivesse sua educação de comportamento nas comunidades de terreiro saberia com a maior naturalidade que, se não há cadeira para o mais velho, não há cadeira para ninguém. Mas é isso, sou da América do Sul, eu sei, vocês não vão saber.
Esse desrespeito grotesco da organização roubou de Milton a chance de assistir à homenagem ao seu amigo Quincy Jones, com quem trabalhou por décadas e que recentemente nos deixou. Jones, inclusive, participa do documentário sobre a vida de Milton. Ambos foram mais do que colaboradores, foram companheiros íntimos de jornadas artísticas, amigos. Para Quincy Jones, Milton é uma das mais brilhantes estrelas do mundo e não é difícil vislumbrar que, onde quer que esteja, não gostou nem um pouco da forma como trataram seu querido irmão.
Bituca é o homem que compôs hinos de resistência durante a ditadura militar, que cantou a esperança nos corações dos estudantes e que escreveu “Maria, Maria”, um hino para as mulheres negras brasileiras. No último show da sua turnê de despedida, Nascimento levou mais de 60 mil pessoas ao estádio do Mineirão.
Encontro de várias gerações para celebrar a magnitude de um dos maiores artistas da história. Dedicou sua apresentação à amiga Gal Costa, falecida dias antes. Esse é o Bituca, um homem que, mesmo diante de sua glória, é generoso e partilha o momento com quem ama.
Foi ele que, quando a ditadura engrossa e mata o jovem Edson Luís, fez um hino que moveu milhares de pessoas em uma das mais impactantes marchas fúnebres do país. Quando este país clamou por diretas, foi de Bituca a voz da esperança. Ele cantou a amizade, o amor e a rebeldia. Colocou sorrisos no rosto de Elis Regina a Clementina de Jesus, de Mercedes Sosa a Sarah Vaughan. Fez do Clube da Esquina uma das esquinas mais famosas do mundo.
Milton Nascimento chorou lágrimas do apartheid sul-africano, caminhou com os povos indígenas, preparou canções de Drummond para que “as mães se reconhecessem e para acordar os homens”. É hora de acordarmos dessa necessidade colonial de tratar artistas estadunidenses como deuses e reconhecer os verdadeiros gigantes.
Dito isso, ao passo que a classe artística norte-americana ignora esse desrespeito, fico na torcida pela minha colega de jornal Fernanda Torres. Que ela possa ganhar o Oscar e, em seu discurso, possa vingar o povo brasileiro, enaltecendo e homenageando Bituca perante a audiência que se faz de desentendida.
No mais, o documentário sobre sua vida estreia no dia 20 de março nos cinemas de todo o Brasil e ele será o grande homenageado da Portela neste Carnaval. Quem manchou sua história foi o Grammy, e se nós brasileiros tivéssemos maior autoestima deixaríamos de prestigiar essa premiação.
Milton Nascimento é eterno e seguirá sempre reconhecido à altura do que merece. Viva Bituca!
Djamila Ribeiro – Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais