O Sol de Cada Um

Desde que me tornei juíza e passei a morar no Estado de São Paulo, todo recesso cumpro o mesmo ritual: vou ao encontro da família carioca para as festas de final de ano e aproveito para usufruir do tal “Sol que nasce para todos”, ainda que não seja bem assim.

Na virada de 2020 para 2021, o ritual foi parcialmente o mesmo, antecedido de maior rigor no isolamento social antes da viagem e com redução do número de encontros familiares. Mas nas primeiras horas do primeiro dia do recesso judiciário, lá estava eu com o pé na estrada, cantarolando os versos de Gilberto Gil, onde “O Rio de Janeiro continua lindo”, ao atravessar a fronteira entre Queluz (SP) e Resende (RJ), mesmo ciente de que as dificuldades enfrentadas pelo Estado do Rio vêm abatendo reiteradamente o orgulho carioca de outrora.

A tradição do recesso findou aí, pois, diferentemente de outros anos, não estiquei minha canga na areia nem um dia sequer durante toda a minha estadia. Hospedada na casa dos meus pais, um casal que reúne hipertensão, diabetes e doenças cardíacas, e sendo eu mesma asmática, não poderia me dar ao luxo de arriscar vidas por uma marquinha de biquini.

Durante todo o período de descanso, fui exceção à regra em uma cidade de veraneio lotada de banhistas absolutamente alheios/as aos avisos da Prefeitura, que proibiam a permanência na areia, o que me deixou com um certo sentimento de que estava sendo passada para trás, sentimento, aliás, compartilhado por muitos/as daqueles/as que insistem em respeitar as regras de distanciamento social e que ainda usam uma combinação de máscaras e álcool em gel como medidas necessárias até que todos/as tenham acesso à vacina ao invés de medicamentos sem qualquer eficácia cientificamente comprovada.

De volta ao trabalho, amargando uma também habitual depressão pós-pausa, na primeira segunda-feira depois do retorno, ao fim do expediente, ainda em home office, caí na tentação de sentar um pouquinho para ver o telejornal e mergulhar de vez na realidade que nos assombra. Na chamada principal, mortes por Covid e a expectativa pelo início da vacinação. No decorrer do noticiário, as matérias se seguiram com a fábrica de veículos que encerra suas atividades no Brasil e lançará cinco mil pessoas no desemprego, o banco público que anuncia o programa de demissão voluntária, e entre uma tragédia e outra, o fim do auxílio-emergencial.

Nesse ponto do noticiário, três vidas negras: uma mãe que foi demitida no mesmo mês em que descobriu que seu filho tinha câncer; uma senhora que vendia doces na rua e que já não tem como fazê-lo; um guardador de veículos que trabalhava no estacionamento de uma faculdade, agora fechada, que tem se alimentado com a ajuda da caridade alheia.

As lágrimas brotaram em mim de maneira involuntária, na medida em que fui imaginando o que passou a ser o cotidiano daquelas pessoas e de muitas outras; gente trabalhadora, que já sobrevivia com sacrifício antes da pandemia e que agora, com o fim do auxílio-emergencial, não tem assegurado o mínimo de dignidade.

Não estamos falando de “vagabundo” ou de gente que “prefere não trabalhar para viver de Bolsa-família”, como alguns/as argumentam para defender o fim de programas assistenciais do governo. Não é disso que se trata. O que está em jogo é a dignidade de inúmeras pessoas que trabalham de sol a sol, naquele mesmo Sol que é para todos/as – mas que parece brilhar menos para elas ou, quando brilha, queima muito mais do que bronzeia (ex.: o/a vendedor/a de mate, tradicional nas areias cariocas), e que perderam a possibilidade de trabalho com a pandemia. Gente que, em sua maioria, é preta e pobre, e mulheres, muitas, que sem um/a companheiro/a com quem possam dividir as responsabilidades, sustentam seus filhos e filhas como dá. Mas e agora, que não dá mais? O que fazer?

Mudar de canal foi o meu primeiro impulso. Não queria começar o ano mergulhada em sofrimento, mas a dor daquelas pessoas me invadiu de tal maneira que não pude me esquivar de trazê-la à reflexão nesse espaço que me foi dado, usando da voz que tenho e que também é um privilégio em uma sociedade onde a voz e a dor dos mais vulneráveis não encontra acolhida, sobretudo quando se trata de vidas negras, haja vista o desaparecimento de três crianças negras em Belford Roxo, região periférica do Rio de Janeiro, que parece não gerar o clamor e a perplexidade que o fato em si carrega.

Eu, que sou uma mulher preta, que vim da periferia e que, muitas vezes, acordei, sentei na cama e me perguntei como iria sobreviver naquele dia, não posso fingir que não é comigo. Sim, sou tocada por essa dor que atinge um contingente aproximado de 48 milhões de pessoas que, com o fim do auxílio-emergencial, perderam o pouco que tinham de possibilidade de sobrevivência durante a pandemia.

A lembrança das minhas próprias dores foi reavivada pelo sofrimento do/a meu/minha semelhante/a. Naqueles dias, sentada na cama, Gilberto Gil – ele novamente – não me deixava perder a esperança, que para muitos/as, é só o que resta, através de seus versos que diziam:

“Os pés, de manhã, pisar o chão.

Eu sei a barra de viver.

Mas, se Deus quiser,

Tudo, tudo, tudo vai dar pé!”

Queria não chorar mais, como recomenda a versão de Gil para No woman, no cry, mas a semana estava apenas começando…

No curso da semana, ainda na quinta-feira, ficamos todos/as sem ar. Dessa vez, não por George Floyd ou Beto Freitas, mas por uma situação limite, inaceitável e evitável: o fim do oxigênio nos hospitais de Manaus. Famílias desesperadas, profissionais de saúde dilacerados/as, pessoas que poderiam estar vivas morrendo asfixiadas e boa parte do país em choque!

Que palavras podem dar conta da dimensão dessa dor? A dor individual, a dor coletiva, a dor de quem ainda tem alguma capacidade, mínima que seja, de sentir. Faltam-me palavras, mas socorro-me de Conceição Evaristo no poema Meia lágrima para dizer que “das lágrimas em meus olhos secos, basta o meio tom do soluço, para dizer o pranto inteiro”.

Gostaria de começar o ano renovando os votos de um 2021 melhor do que 2020, mas desde que o caos se agravou em Manaus, eu não consigo respirar!

Entretanto, tal como no alvorecer de um novo ano, quando minhas forças – e a de muitos/as que sofreram tanto nos últimos dias – pareciam chegar ao fim, no domingo (17/1), inaugurando uma nova semana, recebemos um sopro de esperança: a aprovação de duas vacinas pela Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

E com Gil, mais uma vez, estreio nesse espaço cantando Louvação pela aprovação das vacinas:

“Vou fazer a louvação – louvação, louvação

Do que deve ser louvado – ser louvado, ser louvado

Meu povo, preste atenção – atenção, atenção

Repare se estou errado

Louvando o que bem merece [a Ciência, a Anvisa, os/as profissionais da saúde e dos serviços essenciais e todos/as aqueles/as que trabalharam para que esse dia histórico chegasse]

Deixo o que é ruim de lado

E louvo, pra começar

Da vida o que é bem maior

Louvo a esperança da gente

Na vida, pra ser melhor

Quem espera sempre alcança

Três vezes salve a esperança!”

Tal como na chegada de um novo ano, não há mágica que faça os problemas desaparecerem no bater da meia-noite: Manaus continua um caos, as crianças de Belford Roxo permanecem desaparecidas e não há qualquer previsão de assistência para aqueles que ficaram sem o auxílio-emergencial. Mas assim como na noite da virada, renovamos a esperança de dias melhores!

Que venha a vacina de forma ampla e irrestrita para toda a população e que possamos assim dar início a um Feliz Ano Novo! E se sairmos disso melhor do que quando entramos, quem sabe então possamos construir um mundo onde vigore o respeito à dignidade da pessoa humana e o Sol possa finalmente nascer igual para todos/as?

Flávia Martins de Carvalho é juíza no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mestra em Direito pela UFRJ. Membro do Comitê Científico e Coordenadora Adjunta do Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito (2009/2013). Diretora de Promoção da Igualdade Racial da Associação dos Magistrados Brasileiros (2020/2022).
Fonte: Por Flávia Martins de Carvalho , do Justificando 

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