Nascido entre as camadas mais pobres, o samba foi resistência na ditadura e ainda segue expressando os desejos do povo
Por Michele Carvalho, do Brasil de Fato
A religião dos negros trazidos da África como escravos foi um elemento de muita importância para a formação do samba no Brasil. Durante as práticas religiosas, os africanos dançavam por simples prazer, como um meio de retomar o próprio corpo, que fora escravizado pelos senhores brancos.
Portanto, desde a sua origem, no final do século 19 e início do século 20, o samba foi resistência. Era nos batuques e nas danças que os negros expressavam os desejos de liberdade e reafirmavam suas origens.
O professor do Centro Universitário Fundação Santo André, Renan Oliveira Dias conta que durante a ditadura militar que assombrou o Brasil por 21 anos, não foi diferente.
“Depois do AI-5, em dezembro de 68, muitos terreiros e os clubes negros que não foram fechados, por que alguns foram fechados, se tornam espaços de resistência. São espaços de encontro que vão mostrar muito da cultura negra. É um lugar de expressão, por que vários outros estavam fechados oficialmente pelo governo, pelo regime militar”, lembra.
O ritmo que nasceu entre as classes trabalhadoras, pobres e, principalmente negras, sempre foi alvo de preconceito no Brasil. No entanto, Dias lembra que foi justamente durante os anos de chumbo que compositores e cantores das canções marginalizadas sofreram mais perseguição.
“Logo depois do golpe de 64, ele vai ser duramente reprimido. Não há nenhuma manifestação de samba naquele momento, principalmente depois do AI-5, em dezembro de 68, nenhum espaço vai ser incentivado, não vai ser tolerado, muito menos incentivado. Então, nesse período inicial do golpe de 64 o samba é muito perseguido mesmo pelos generais”, conta.
Diferente de outros movimentos que se organizaram para fazer um enfrentamento direto ao regime ditatorial, o samba simplesmente pelo fato de existir, representava uma afronta aos militares e ao projeto de país pensado por eles. “O samba não é um movimento organizado que vai enfrentar o regime militar, mas como expressão cultural, ele acaba sendo uma luta política contra o regime, por que ele vai expressar todos os anseios, todas as manifestações que naquele momento incomodavam o regime militar”, avalia o professor.
Uma dessas manifestações surgiu no Rio de Janeiro, no ano de 1971, fruto do trabalho dos amigos Jorge Coutinho e Leonides Bayer. Durante 13 anos, o palco do projeto Noitada de Samba foi ocupado por compositores e intérpretes que viviam nos morros e bairros populares do Rio de Janeiro e que tinham na música, a única forma de expressão.
Cartola, Elizabeth Cardoso, Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Zé Keti, Leci Brandão, Martinho da Vila, Adoniran Barbosa são apenas alguns dos nomes que cantaram e dançaram durante as noitadas antes de ficarem conhecidos nacionalmente.
Os shows aconteciam sempre às segundas-feiras, no Teatro Opinião, em Copacabana e atraíam gente de todo o Brasil e até mesmo do exterior. Coutinho lembra que as pessoas iam assistir às apresentações para esquecer da repressão daqueles tempos.
“As pessoas estavam precisando ouvir isso. O Cartola não era uma pessoa bonita, a Clementina não era uma pessoa bonita, o Nelson Cavaquinho não era uma pessoa bonita. Bonita de alma, de talento, de poesia dentro dele. Mas assim, o cara falar eu quero ver esse galã, não. Mas, as pessoas iam por que tinha essa pureza, tinha essa verdade né? Era o morro dentro do asfalto ali em Copacabana, essa que era a verdade”, diz.
O caráter transgressor do samba não estava apenas nos encontros semanais do Teatro Opinião. Dias conta que o ritmo foi ganhando força e se consolidando como um forma de resistência nas reuniões e festas dentro das casas da população em geral.
“Muito se resgata também dos encontros nas famílias, que era uma tradição do samba já no começo do século 20, que nesse momento em especial se recupera muito, ali no começo dos anos 70, que é o samba de fundo de quintal, que vai se fortalecendo na marginalidade e depois no final dos anos 70, num contexto de abertura, ele vai se fortalecer e ganhar os espaços de mídia pelo país”.
Seja nas senzalas de um Brasil escravocrata, no fundo das casas e palcos clandestinos de uma época marcada pela repressão e censura ou nos discos e grandes shows dos dias atuais, o samba segue resistindo como expressão cultural e das lutas políticas das classes mais pobres.