Sorridente e receptiva, Maria Izabel Acciolly, 28 anos, estudante de Ciências Sociais e mãe do Vinicius, nos concedeu entrevista sobre feminismo negro e tornou-se mais uma de nossas Marias. Ela, que realiza pesquisas com mulheres que perderam seus filhos de forma violenta, intitula que o seu maior “cargo” é ser mãe. Desde o começo da conversa, Izabel abriu as portas do seu apartamento para nós e da vida. Falou das lutas que existem dentro do feminismo negro, como ela se percebeu nesse movimento e também fez ressalvas importantes que ainda dificultam a união das feministas. Todo e qualquer movimento passa por dificuldades que precisam ser refletidas e trabalhadas, para que se tenha um maior fortalecimento. Izabel, que desde criança viu de perto negras serem presas e injustiçados, transformou essa visão em luta. Há aproximadamente dois anos, Izabel se sentiu totalmente pertencente ao feminismo negro, que, na verdade, sempre foi seu. Hoje, o seu maior desejo da mãe de Vinicius é criar o filho longe dos padrões patriarcais, é fazê-lo entender não só a importância da igualdade de gêneros, mas também o valor de sua negritude.
Por Joseanne Nery Do Maria Maria
– De onde surgiu a vontade se inserir no movimento feminista negro?
É uma questão de você se perceber. Eu também dei a sorte de cair numa família de uma mãe que tem o exemplo muito forte, ela sempre teve atitudes cuidadosas comigo. Aliás, eu tive o exemplo de mulheres fortes em casa. Minha vó é outro exemplo, ela morava em Juazeiro, batalhou para ter uma formação e não depender do meu avô. Minha família foi quebrando esses paradigmas e essas atitudes foram culminando na minha formação. A percepção de feminismo veio junto com a percepção de negritude pra mim. Na escola as crianças eram racistas, colocavam apelidos. São coisas que parecem ser bobas, mas para as crianças são muito significativas. Por exemplo, também na escola escolhiam as crianças brancas para fazerem as coisas mais importantes e os negros para fazerem outras coisas. São histórias que vão marcando. Minha mãe também trabalhou a vida inteira nos presídios, daí eu via as mulheres negras sendo presas e isso foi contribuindo para que eu também aceitasse o meu valor. Portanto, a questão do feminismo veio junto com a compreensão que eu tenho um valor sim.
– Você comentou em uma conversa que não se inseria muito em movimentos feministas porque você não se sentia acolhida. Por quê?
São duas questões. A primeira: ser mãe. Alguns movimentos que eu tentava me inserir não entendiam minha problemática, parecia que eu era a única mãe no mundo que têm um menino que reproduz machismo com 10 anos de idade, sendo que eu sei que não sou a única. Tem a questão de algumas mulheres não gostarem de criança ou das rodas de conversa serem em um ambiente acadêmico onde, às vezes, a criança não é bem aceita. Já a outra questão que me incomoda é sentir que o movimento é elitista, que a vivência das outras mulheres não contempla o que se passa na periferia. Nas favelas, as mulheres têm atitudes feministas sim, são chefes de família e percebem quando o relacionamento não é legal. Eu sinto que está começando a chegar nas periferias, aos poucos, o entendimento que a gente não precisa ser tão maltratada. Essas são as duas críticas que me fazem não estar tão presente em coletivos de faculdade.
– Você já passou por alguma atitude preconceituosa que te marcou?
Quando o Vinicius estava com dois anos, ele queria brincar naqueles parquinhos de shopping. Precisava fazer um cadastro pra entrar no lugar e ele era mais branquinho, quando menor. E me perguntaram: “cadê a mãe da criança?” E eu disse: “eu sou a mãe!” Foi a questão que mais me marcou, porque não acreditavam que eu era mãe dele só por causa da cor. Eu não podia ser mãe dele por que eu sou negra e ele era mais branco? Eu saí chorando do parquinho e o Vinicius também.
– Como você começou a trabalhar para que isso não te afetasse e começou a ver isso como luta?
Aconteceu uma situação com a minha mãe e a partir daí começamos a falar mais sobre isso dentro de casa. Ela foi dar uma palestra e uma colega dela perguntou se ela estava passando por alguma dificuldade financeira, devido ao “cabelo desarrumado” e “sem prancha”. A partir dessa questão estética, começamos a falar mais disso em casa. Se eu fosse fazer minhas unhas em um salão de beleza e quisesse pintar a unha de vermelho, a manicure, que também era negra, reproduzia “você é tão escurinha, tem que pintar francesinha pra clarear mais”. Então, a nossa questão estética passou a comandar ou puxar a nossa reflexão sobre ancestralidade. Começamos a nos empoderar mais. Por que tudo que era negro era “feio” ou a negra era vista como a “mulata” ou “gostosa”? A mulher negra é vista como um objeto nessas questões. E eu não queria ser vista em nenhum desses dois pontos, queria apenas ficar de bem comigo. Meu filho também passou por uma situação parecida na escola, quando o amiguinho dele disse que gostou de ir à França porque não existiam “pretos” lá. O Vinicius passou a querer suavizar a cor da pele para ser mais aceito, não gostava quando eu chamava ele, carinhosamente, de “pretinho”, ele falava que a cor dele era “marrom”. Foi a partir disso que eu percebi que tinha trabalhar isso, porque senão eu ia estender para outras gerações da minha família questões que não eram bem resolvidas comigo. Então, fui me afirmando e me posicionando entre os amigos também.
– Existe essa tentativa de diálogo entre feministas negras e feministas brancas, entendendo que muitas do feminismo branco não entendem do assunto porque pertencem a outros espaços, não leram ou não participaram de nenhum debate sobre o tema, você acha que vale a busca para o entendimento da dicotomia feminismo negro X feminismo branco?
É uma polêmica que sempre chega pra mim. Eu tenho uma grande amiga na faculdade que é loira dos olhos azuis e é uma feminista que eu admiro bastante. A nossa amizade começou muito pelo alinhamento nas questões feministas que são macro, mas aos poucos ela foi vendo meu dia a dia e percebeu que era bastante diferente do dela. Porém, não tive que ser didática com ela em alguns pontos, porque ela apenas percebeu e teve empatia. Ela teve tanta empatia que pesquisou sobre o feminismo negro e vinha conversar comigo sobre. A partir desse posicionamento dela, eu me senti muito à vontade pra falar com quem tem interesse de compreender. Aconteceu uma situação em que eu estava na faculdade, estávamos na sala discutindo um texto sobre a mulher negra, a professora percebeu que eu era a única negra na sala e pediu meu posicionamento sobre o texto, na mesma hora fui interrompida por uma pessoa branca, que foi apresentar sua perspectiva, naquele momento me senti extremamente desrespeitada. Então, com esse tipo de pessoa, eu não dialogo. Eu não tenho paciência para dialogar com essas pessoas, porque elas não vão entender. Não tenho obrigação de ser didática com quem não tem interesse em ouvir.
– O que você acha da nova repaginada que o feminismo está tendo como um todo, entre as adolescentes?
A gente deveria estar muito otimista com relação as próximas gerações, porque algumas dessas mulheres serão mães e elas vão educar conforme as convicções delas. É provável que em duas geração a gente consiga reverter muita coisa absurda que acontece hoje em dia. Um grande papel desse alcance maior é a internet, se você tiver interesse vai ter acesso a muita coisa. Erra muito quem acha que essas meninas adolescentes são ingênuas e não querem saber disso, muito pelo contrário, elas querem saber muito! Nessa perspectiva, eu estou otimista para o futuro.
– Como você tenta desconstruir o machismo que o seu filho, às vezes, reproduz?
Pego no ato e problematizo a situação. Um dia, ele estava falando que “tal coisa é de menino e tal coisa é de menina”, eu expliquei que não existem coisas de meninos e meninas, mas sim de todo mundo. Todo mundo pode fazer o que quiser. Eu vou puxando várias conversas com ele, para conscientizar mesmo. Falei para o Vinicius que existem meninos que gostam de namorar com meninos e meninas que gostam de namorar com meninas, que isso acontece desde sempre e que se um dia ele se sentir atraído por meninos vai tá tudo bem, as coisas não vão mudar por isso. Eu tento adiantar esses diálogos, porque eu tenho medo que ele escute coisas externamente que sejam tarde demais para eu tentar reverter.
– Você acha que a internet ajudou no empoderamento feminino?
Acho que ajudou bastante. Tem pessoas que moram no interior e não têm acesso a grupos feministas ou até mesmo como eu, que não me sinto contemplada em nenhuma roda feminista, mas me considero feminista. A internet formou redes de pertencimentos. Se não fosse a internet, talvez eu não me sentisse tão pertencente a algo maior, me sentiria apenas uma gotinha no oceano. Não me sentiria pertencida ao movimento feminista.
– Você estuda sobre violência, o que sentiu ao ler sobre o caso da Beatriz, estuprada por 33 homens?
É assustador ter que ouvir a notícia e pior ainda ter que ouvir os comentários. A gente tá vivendo num país reacionário e isso me deixa pessimista. Eu sinto que figuras como o Bolsonaro estão ocupando esses espaços porque representam uma parcela da população. É ingenuidade nossa achar que apenas aquele único cara pensa daquele jeito. É também um erro achar que a favela é homogênea, não é! Você encontra gente de todos os jeitos na favela, os modos de vida são múltiplos. Cada comunidade tem sua realidade, é muito complicado ouvir das pessoas que o problema do caso da Beatriz foi a favela. Falaram que o problema também é porque ela curtia funk, sou totalmente contra essa hierarquização de cultura. Não existe cultura melhor ou cultura pior, existem culturas diferentes, cada qual com seu valor. Então só é legal o funk se a menina estiver rebolando e servindo ao homem, se ela estiver se divertindo, então, é um problema?
– Como você vê a apropriação pelas mulheres de bens culturais mais populares, como o funk, para propagar o empoderamento?
Vejo de forma totalmente positiva. Tem também o rap, ou mulheres que fazem slam (poesia falada e performática, geralmente em forma de competição). Uma vez eu fui pra São Paulo e vi uma menina na Paulista que tava em cima de um caixote, soltando o rap no improviso e falando sobre feminismo. Mulheres que usam coisas mais regionais como o maracatu, as que usam elementos da estética africana como um reforço e uma reverencia a sua ancestralidade. O que eu não considero positivo, que é muito discutido na antropologia, no meio que eu estudo, é a apropriação cultural. É uma opinião particular, mas não me sinto a vontade se eu estiver em uma ambiente com uma mulher branca de turbante. Tem outras pessoas dentro do feminismo que acham que a globalização é isso, que nós comemos sushi aqui então qual é o problema? Mas pra mim eu vejo como uma questão importante. As pessoas usam itens do candomblé e da umbanda mas não tem ideia daquela simbologia, e que quando é pra xingar um outro chama de macumbeiro, mas ta lá querendo reverenciar Iemanjaa quando chega o réveillon. Tenho minhas ressalvas quanto a isso. Mas quando eu vejo a mulher negra usando elementos da cultura negra, africana, para se empoderar cada vez mais, é maravilhoso. É você reconhecer sua ancestralidade, exalta-la e reforçar sua estética. É por isso que através da estética há empoderamento. A estética negra foi o que me impulsionou a me aceitar como eu sou, pra depois aceitar o outro como ele é e em seguida valorizar quem nós somos.
– Fala mais sobre a diferença entre as vivências de mulheres negras e brancas e da necessidade de isso ser mostrado e discutido separadamente.
Eu vou usar a fala da Ezla Soares: a carne mais barata é a carne negra e da mulher. Porque de todas as classes, a que mais sofre é a mulher negra. A gente sofre o bullying quando criança, que já começa errado porque chamamos de bullying e não de racismo . Quando se é adolescente, ou você não consegue se relacionar com ninguém porque você é a feia, ou você consegue se relacionar mas sendo erotizada, desde muito cedo. As pessoas esperam que você engravide adolescente, esperam que você comece a trabalhar mais cedo. Existe uma grande ilusão, que mexe muito comigo, de achar que a mulher negra é muito mais forte. E essa carga é pesada demais pra gente aguentar. É como se esperasse que a mulher negra desse conta, já que é tão oprimida, sempre tão oprimida, que isso se já se tornasse natural pra ela. Já escutei muito: não,mulher negra é uma batalhadora, é muita raçuda. Isso é muito pejorativo, até essa obrigação de ter que ser forte, eu acho que ela é muito prejudicial. Eu fico pensando pelo lado das mulheres da minha família que tiveram que ser muito fortes porque os homens que elas se relacionaram foram muito opressores, e teve uma hora que elas tiveram que mandar pastar e viver só. Até isso acontecer elas tiveram que ser A forte, e depois comer a bronca sozinha. Então as reivindicações das mulheres brancas são muito diferentes das reivindicações de mulheres negras. Se for uma mulher negra e periférica, piorou. A questão de você ter que trabalhar mas não ter com quem deixar seu filho. Muitas vezes eu escutei mulheres negras que diziam: eu tive que trabalhar pra ter que sustentar meu filho, mas não tinha com quem deixar, e por medo de ele usasse droga eu o amarrava no pé da mesa. Então não é uma vivência muito comum às mulheres brancas, e quando você fala, você não quer ser só ouvida, você quer ser compreendida. Falta um pouco dessa compreensão.
– Você acredita no empoderamento da mulher negra?
Acredito que as mulheres negras tem se empoderado cada vez mais, mas uma coisa que me preocupa é a afetividade, como essas mulheres negras têm se relacionado e como tem sido recorrentemente deixadas em ultimo plano. As mulheres negras que conseguem um casamento, ou que são tidas como bonitas, elas tem traços finos, como dizem, elas não tem o nariz largo, os lábios grossos. Porque lábio grosso em branco é lindo, em negra é exótico. O exótico é o pior eufemismo que existe. Quando você tem uma beleza que eles não conseguem admirar, eles dizem exótico. A minha preocupação tem sido essa, fora a questão das mães negras. Nesse caso que ocorreu agora nos presídios, você via que as mães geralmente eram mulheres negras, mulheres que tiveram esse histórico de abandono. Criaram seus filhos sós, tiveram dificuldades financeiras, porque filho não é barato. Eu vejo que são recorrentes problemáticas que não afetam tanto as mulheres brancas. E quando você tenta falar sobre, elas não compreendem muito bem. Ou então são as donas do assunto, que é o que me deixa mais entristecida.
-Como você acha que o feminismo negro contribui para uma cultura de paz?
Eu tenho um problema com a cultura de paz, porque acredito que ela nunca vai existir. Podemos minimizar os efeitos da violência, e a gente pode deixar de ser uma vítima em preferencial, a vítima constante. Que a cor da pele deixe de determinar que você é um alvo fácil, ou que por ser mulher você não vai reagir. Acredito que muitos homens cometem atos como o que aconteceu com a Beatriz porque acham que estão completamente certos, que o corpo da mulher é dele, que nada vai acontecer e ele vai sair impune. Sinceramente, acho que vai chegar uma hora em que nos vamos ter falado tanto com as mulheres, que vai ter que falar com os homens. Por exemplo, ontem eu sai pra almoçar com uns amigos da faculdade depois de uma aula de campo, e um amigo puxou o tema feminismo, e depois se arrependeu dizendo que daria em confusão, porque a mesa estava cheia de mulher feminista. A gente começou a dizer a ele que, na verdade, ele tem que começar a se acostumar, porque vai ter. A discussão vai acontecer na mesa de bar, no restaurante com amigos, na faculdade, na escola, em roda feminista, no grupo de whatsapp das mães do colégio, vai chegar em todos os lugares e vai atingir os homens com certeza. A luta é da mulher, a mulher tem que ser empoderada, mas vai chegar uma hora em que o homem vai ter que sentar, ouvir, e dizer: ok, me diga o que to fazendo de errado, me fale como é o certo, que eu não sei. Eu já vejo algumas pessoas tendo essa postura e me alegra bastante. Acredito que o conflito pode, talvez, diminuir através desse viés, mas ainda vai demorar um tempo.