O trabalho decente é conceituado pela Organização Internacional do Trabalho como a síntese de quatro objetivos estratégicos da organização, que incluem o respeito a direitos no trabalho, sem discriminação, a promoção de emprego produtivo e de qualidade, a ampliação de proteção social a trabalhadores e trabalhadoras, e o fortalecimento de diálogo social.
Em tempos em que o debate de ESG –sigla que em língua inglesa refere-se às práticas empresárias relacionadas à conformidade com aspectos ambientais, sociais e de governança– ganha cada vez mais visibilidade, o conceito de trabalho decente e a promoção e efetivação dele no cenário nacional deveria ser pauta principal, seja do poder público ou de iniciativas privadas.
No entanto, permanências de dinâmicas sociais arraigadas no tecido social brasileiro fazem com que as relações de trabalho no Brasil ainda sejam perpassadas por lógicas de precarização, exploração e violações de direitos.
Recentemente, foi amplamente noticiado que as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton mantinham contrato de terceirização de colheita de uva com fornecedor cujos trabalhadores e trabalhadoras eram submetidos a regime de trabalho análogo à escravidão na cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul.
Após a fuga de três trabalhadores, operação realizada pelo Ministério do Trabalho e pela Polícia Federal resultou no resgate dos outros trabalhadores e trabalhadoras, incluindo mulheres grávidas e crianças que moravam no alojamento.
Entre as violações identificadas, nota-se que as pessoas resgatadas, que vinham de outras localidades em busca de oportunidades de trabalho, eram submetidas a violências corporais, com utilização de choques elétricos e sprays de pimenta, e privados de liberdade, além da precarização laboral que enfrentavam, que incluía remuneração inadequada, servidão por dívida e jornadas de trabalho extenuantes de mais de 15 horas diárias.
Apesar de esforços da comunidade local em denunciar a situação às autoridades, a atuação pública frente ao problema só foi levada a cabo apenas após a fuga de trabalhadores do local de trabalho.
Embora a ideia em torno da concepção de escravidão remeta aos períodos pretéritos coloniais e de tráfico internacional de pessoas, o episódio citado permanece uma problemática contemporânea.
Conforme pesquisa do Ministério do Trabalho, ao longo do ano de 2022, 2.575 trabalhadores e trabalhadoras foram resgatados de situações laborais em que, nos termos no Código Penal brasileiro, haveria submissão de pessoas a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, com condições degradantes de trabalho ou restrições à locomoção em razão de dívida contraída com o empregador.
É válido ressaltar que o Brasil já foi condenado no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em razão das debilidades institucionais para o enfrentamento do trabalho escravo em vista do caso Fazenda Brasil Verde, no qual homens e mulheres também foram submetidos a trabalho análogo à escravidão.
A atualidade do problema demonstra a permanência de dinâmicas sociais baseadas em naturalização de violências e desumanização que encontram fundamento nos regimes coloniais de hierarquização social e permanecem sendo uma realidade, sobretudo em contexto de trabalho rural, industriais têxteis e postos de trabalho doméstico, em que são empregadas, sobretudo, pessoas racializadas.
O perfil de trabalhadores resgatados repete-se, e não por coincidência: homens, pretos e pardos, em idade adulta e com baixa escolaridade, em municípios onde há baixas taxas de índice de desenvolvimento humano.
Apesar de o trabalho análogo à escravidão, como o ocorrido no episódio das vinícolas, figurar como uma forma de exploração laboral em nível ultrajante, violações às disposições da regulação trabalhista brasileira são cotidianas.
Não é lugar incomum nos depararmos com trabalhadores e trabalhadoras que atuam em jornadas exaustivas com remuneração insuficiente para a própria subsistência com cada vez menos proteção social, a despeito das previsões da legislação trabalhista.
Tais fatos permitem a aferição de que, no contexto das relações laborais, vivenciamos uma crise permanente de acesso a direitos trabalhistas em que o trabalho decente é uma realidade para poucos.
Nesse sentido, camadas populares são as que mais sofrem com os impactos da precarização e falta de atuação do poder público, destacando-se a realidade da população afro-brasileira.
Se por um lado as dinâmicas sociais são demarcadas por violações, por outro, em evidente complementariedade, os personagens que compõem o sistema institucional de proteção ao trabalho e emprego no Brasil sofreram investidas no sentido de desestruturação e falta de investimentos das autoridades em posição de poder nos últimos anos –a exemplo do Ministério do Trabalho, o qual desempenha papel protagonista na fiscalização das relações de laborais, em conjunto com o Ministério Público do Trabalho, que havia sido extinto da estrutura do Poder Executivo Federal e foi reinserido apenas no último ano.
A alteração do estado da arte que ainda permite que homens e mulheres sejam submetidos de forma sistemática a trabalho precarizado e a violações de direitos fundamentais e do trabalho só será possível mediante esforço coletivo e institucional convergente para celebração de um novo pacto social pautado na superação de lógicas coloniais e racistas, na atuação do poder público de forma a garantir proteção social aliada a proteção ao trabalho e a interesses populares, e no reconhecimento efetivo do direito ao trabalho decente como um direito humano.
Thiago Garcia
Advogado formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador das intersecções entre direito, sociedade e relações de trabalho