Ocupar escolas, ocupar o discurso especialista

“O indivíduo era sempre descrito em função de seu desvio possível ou real em relação a algo que, se não era definido como o bem, a perfeição e a virtude, era definido como o normal” (p. 198). Assim, em “A sociedade punitiva”[1], Michel Foucault nos sugere como os indivíduos foram encaixados nos mecanismos e instituições de produção e transmissão de saber, constituindo discurso sobre o próprio indivíduo, seu sujeitamento indissociado de uma “situação de poder”.

Por FLÁVIO SARANDY, da Revista Espaço Acadêmico

“Vagabundos”, “maconheiros”, “invasores”, “os que mal sabem ler”, “manipulados”. Assim o governo pretende trazer à normalidade os estudantes que ocuparam as escolas por todo o país. Não sem razão a crítica ao movimento das ocupações atua por termos relacionados ao mundo do trabalho ou ao desvio de comportamento da norma fixada para o que é considerado a virtude. Ou ainda, desautorizando os estudantes em “assunto que não lhes competem”, como a proposta que altera a constituição e fixa o congelamento dos investimentos sociais por vinte anos.

Foucault nos descreve as formas de sequestração na sociedade capitalista, e das instituições especiais que exerceram essas funções, sobretudo entre os anos de 1830 e 1870. Essas instituições constituíram o que ele denominou “suplementos de poder para fixar os indivíduos nos aparatos sociais, pedagógicos, produtivos etc.” (p. 192), cujo sentido não foi o de criar uma discursividade sobre o indivíduo e seu cotidiano (algo anterior a essas instituições de “sequestro da existência”, que permaneceram depois delas), mas o de produzir uma nova discursividade normalizadora e uma espécie de forma social completamente ajustada para o mundo da produção capitalista. E foi deste modo, por essas instituições que Foucault denomina a “fábrica-convento-caserna”, que a totalidade da existência – os prazeres e os desejos do corpo, a intimidade, a sexualidade – foram homogeneizados e disciplinados em ajuste ao tempo da produção. “Foi preciso organizar e sujeitar o tempo da existência dos homens a esse sistema temporal do ciclo da produção” (p. 194). Mais que isso: foi necessário deslocalizar o indivíduo medieval, fixado em território sobre o qual se podia exercer soberania, desocupá-lo em mais de um sentido – torná-lo sem lugar e sem afazeres, para então sujeitá-lo a partir de outro registro, o tempo em sua plenitude. Desterritorialização para tornar possível o sequestro do tempo da existência. Tempo da vida não mais ritmado pelo lazer, pelo prazer, pela sorte, mas ditado pelo que-fazer em cada momento minuciosamente regulado.

Para alcançar o compromisso desse novo sujeito, ajustado, normal e disciplinado, as instituições de sequestração realizaram três funções, nos dizeres de Foucault. “A primeira, a aquisição total do tempo por parte do empregador. Este não adquire apenas indivíduos, mas uma massa de tempo que ele controla de cabo a rabo” (p. 193). Controle, por sua vez, expresso em regulamentos detalhados sobre tarefas, atividades, interditos e horários, de modo a garantir que os indivíduos estivessem o tempo todo ocupados em atividades produtivas. Mas o sistema de sequestração não foi composto somente por instituições fechadas, porém Foucault o identifica na criação das caixas de poupança para os operários (você precisa dominar o acaso da existência, doença e desemprego), das cidades operárias, dentre outras. A escola atualmente pode, em certa medida, ser compreendida como partícipe da mesma lógica dessas instituições, onde ainda predominam os mecanismos de controle total doso tempo em seu interior, a vigilância sobre todos os espaços e comportamentos individuais e o emprego maximizado da atividade do aluno.

A segunda função: resolver os paradoxos dessas próprias instituições, dado que, nos termos de Foucault, era de esperar que essas instituições fossem monofuncionais. “O colégio instrui, a fábrica produz, a prisão aplica uma pena, o hospital trata” (p. 194). No entanto, o que se viu foram instituições onde essas noções se sobreporam e se cruzaram, nas quais regulavam normas que extrapolavam suas circunscrições e diziam respeito a uma sociedade que se almejava criar. Assim é que às fábricas não se aplicava um regulamento do tipo “trabalhem e, afora isso, façam o que quiserem” (p. 194), nem à escola bastava “aprendam a ler, escrever e calcular e, depois, não se lavem se isso não lhes der prazer” (p. 194). Ao contrário, um sem-número de regras, vigilância e controle diziam o comportamento que se esperava daquele que cultivava “a virtude”, regrando o normal contra a ameaça do desvio, ainda que tal comportamento nada tivesse a ver com a “finalidade objetiva da instituição”, a exemplo da norma da heterossexualidade que não dependia de sua correspondência à média dos indivíduos, mas simplesmente permitia um controle quase absoluto do sujeito. É ainda Foucault que nos recorda: “essa norma que, como se sabe, na época não era forçosamente a média, também não era, de certo modo, uma noção, mas uma condição de exercício daquela discursividade à qual ficavam presos os indivíduos sob sequestro” (p. 198). A vigilância e o julgamento no interior dos sistemas de sequestração de que nos fala Foucault dão-se especialmente sobre a moral individual e, sobretudo, sobre o comportamento sexual. Assim sujeitam-se os corpos (tornando-os “corpos dóceis”) e imprime-se às consciências um estatuto a obedecer. Mais que isso, enfraquecem-se as resistências.

O que Foucault nos ensina é que tais instituições tinham que produzir um tipo de sujeito, fabricar o social, instituir uma nova sociabilidade para além de seus próprios muros, mas que se espraiasse por todo o tecido social de modo a regular as relações a partir de uma imagem. É assim que as normas internas serviam de ponto de apoio ao poder e trabalhavam com uma imagem fictícia da sociedade. De modo semelhante, cremos atualmente no “aluno” como “adolescente”, aquele que não maturou, que não está pronto. Razão pela qual vê-los ocupar suas escolas nos assusta; afinal, teriam eles certeza do que estão fazendo?

A terceira função das instituições de sequestração a fim de cumprirem suas missões dizia respeito à criação de uma “judicatura”. Era preciso que uma instância julgasse e delimitasse a ação e com ela, a consciência. “Para que pudesse haver efetivamente essa fabricação do social e essa instauração de um tempo da vida que fosse homogêneo ao tempo da produção, era preciso que houvesse, no interior daquelas instituições de sequestração: primeiramente, uma instância de julgamento, uma espécie de judicatura ininterrupta, que tornasse os indivíduos sempre submetidos a algo como uma instância judiciária que avaliasse, impusesse punições ou desse recompensas” (p. 197). E o julgamento implicou em vigilância permanente, anotações e toda uma contabilidade moral do comportamento individual.

Assim foi para inscrever os indivíduos numa discursividade que a um só e mesmo tempo instituísse uma forma social, seus valores, suas crenças, seus interditos e seus sujeitos. O discurso que instituiu o novo sujeito, o sujeitou. Esse novo tipo de discursividade produziu saberes sobre o indivíduo e sobre a vida em sociedade (fixando o que é o normal, a virtude, o correto e o justo) e engendrou mecanismos de poder capilarizados, de tal forma a permitir a exploração do trabalho por meio do sequestro do tempo da existência e da fabricação do sujeito.

Não espanta, portanto, que se critiquem os estudantes como se esses fossem “vagabundos” e que tais. Marcadores desse tipo de discurso que somente enxerga valor na atividade produtiva. Considerada em suas relações com o mundo do trabalho, submeter-se à escola é submeter-se ao sistema de sequestro do tempo da existência; então é admissível que, mesmo não sendo “atividade produtiva” (“fulano só estuda”), um aluno cujo comportamento é “normal” (ajustado à instituição vigente) não pode ser acusado de “vagabundagem”. A não ser que não “estude direito”. Mas, ocupar a própria escola? Aqui a classificação se altera em detrimento do que julgamos por normal e anormal e o estudante recebe sinal valorativo negativo. O sistema acusatório, neste caso, lança mão de termo em nada relacionado ao espaço escolar para deslegitimar o comportamento não autorizado, tensionando seu retorno à normalidade. Assim também, a acusação “maconheiro” evoca estereótipos desconectados do ambiente educacional, no caso, relacionados à percepção de algo criminoso, antissocial, perigoso. O estudante recebe a marca do inimigo social. O que é pior, legitima-se toda a violência.

Tais mecanismos acusatórios tem por função denunciar o estudante como um estranho, o ocupante como invasor, aquele que ao se desviar do instituído é potencialmente gerador de caos e portador de ameaça às relações sociais estabelecidas. Em certo sentido, esses mecanismos ideológicos percebem o sentido exato das ocupações, subverter o instituído que domina e subjuga o indivíduo em ficções sociais que não refletem seus interesses. Os que acusam os estudantes dos movimentos de ocupação veem neles precisamente os estranhos que se tornaram, porém estranhos porque não mais subjugados à instituição que as ocupações subvertem, salutarmente.

Assim, os estudantes ocupam os espaços contra o sequestro do tempo da existência. Rompem a institucionalidade escolar contra a discursividade do sujeitamento – discursividade feita em função de uma normatividade que se apresenta como ficção e dominação. Subvertem uma ordem social para instituírem o novo, no qual se engajam e se reconhecem. Tornam o espaço escolar um espaço próprio, criado ou mantido pelas próprias mãos, um espaço “adolescente”. Um processo carregado de violência simbólica contra a violência cotidiana a que estão submetidos no dia-a-dia da escola. O que nos permite afirmar a excepcionalidade e ineditismo do processo de ocupação de escolas é precisamente a força simbólica que carrega o movimento.

Mas em nada assumir a perspectiva (possível) que aqui se propõe nos ajuda a superar o temor e a sensação de ameaça que nos são impostos ante as ocupações. Porque essa mesma discursividade forjada nos processos de sequestração permanece nos saberes instituídos sobre criança, adolescente, pedagogia e escola. Pertencemos todos a este mesmo campo discursivo. Por relações oblíquas, o discurso educacional hegemônico permeia nossa compreensão desses movimentos, assumindo o estudante como “adolescente”, que deve ser dirigido ao ponto da maturidade, da pulsão orgânica ao normal-social, ao qual se impõe a autoridade capaz de encaminhá-lo, o “adulto”. A escola é “coisa para adultos”. E presos a essa dicotomia – “adulto-adolescente”, o discurso político e educacional hegemônico diz aos estudantes que deixem as coisas de adultos para os adultos. Assim é que ocupações de escolas não podem senão ferir a segurança moral dos que acham-se emaranhados à discursividade da sequestração. Ou dos que muito tem a ganhar com a sua hegemonia.

“Esse discurso não só toma os indivíduos do começo ao fim da existência, como também não é proferido pelo próprio indivíduo, e sim por uma autoridade hierarquicamente situada no interior desses sistemas de sequestração” (p. 198). Daí que cremos na pretensão de ensinar autonomia e de “propiciar” o protagonismo do aluno por um “ensino ativo”. Autonomia, no caso, abstrata: um lugar discursivo, porém circunscrito e delimitado pela escolha entre alternativas postas ou como participante da “construção de sua aprendizagem”, mas não autonomia de um sujeito capaz para decisões macropolíticas, “coisas de adultos”. A participação que se pretende é pré-definida, é participação fixada na forma e no conteúdo, participação autorizada e legítima. Participação ou autonomia definidas em lei. E isso não é pouco. Pois que a autoridade legítima de enunciar o que é autonomia é o único sujeito verdadeiramente autônomo, para quem o discurso educacional e político cria as condições práticas admitidas de autonomia. Mas heteronomia não produz autonomia.

A tal ponto estamos emaranhados na discursividade que nos sujeita e produz (alguns, definitivamente presos a compromissos e ganhos de todo tipo proporcionados por essas práticas) que mal percebemos a contradição de uma proposta de reforma do ensino médio que tem por argumento basilar a autonomia do estudante frente a um currículo flexível, quando ao mesmo tempo nega ao estudante qualquer possibilidade de construir o modelo de ensino que deseja. Proposta que recebe rejeição das ocupações de escolas. Escolas transformadas por ocupações que a reinventam como espaços motivadores.

O currículo monótono, nos dizeres do Ministério da Educação, é precisamente aquele no qual o estudante não se reconhece. E não porque não o escolheu. Mas porque não participou de sua produção. A reforma que o governo propõe atualmente (aliás, a eterna reforma educacional em que nos acostumamos a viver neste país) mudará para tudo manter igual, onde a escola seguirá não sendo um espaço dos estudantes adolescentes, mas feito para eles. E este é o problema.

É evidente que a escola não pode ser apenas o que os estudantes querem que ela seja. Existem muitos sujeitos implicados nessa instituição. Mães, pais, professores, técnicos, estudantes, gestores, comunidades, governos, movimentos sociais, sindicatos e universidades, todos deveriam participar em relação simétrica das definições e decisões da escola que queremos. Utopia. Ao assistirmos o Presidente da República ironizar os estudantes que legitimamente lutam por reconhecimento de sua condição de sujeitos verdadeiramente autônomos, como “algo ao qual não se pode dar importância”, pirraça de adolescentes, fica patente que não há lugar para eles no pensamento político e educacional hegemônico.

O movimento de ocupação deveria se ampliar para a luta contra-hegemônica: para a ocupação do discurso especialista. É aí que se trava a batalha que legitima toda a sorte de intervenção sobre a política educacional. No entanto, o silêncio dos intelectuais sobre as ocupações das escolas sinaliza que eles ainda não maturaram. Sem qualquer resistência significativa, seguem os gestores da política educacional amparados pelo consenso a que se referiu Foucault quanto aos efeitos dos processos de sequestração, e a luta política estudantil, isolada.

[1] Michel Foucault. A sociedade punitiva, São Paulo: Martins Fontes, 2015.

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