ODE a SP: como ver a cidade do lado de cá da ponte

Foto: Ilustração de Andre Terayama.

Em mais de 400 anos, fica difícil calcular quantas pessoas passaram, morreram ou se afetaram pelas valetas, ruas e esquinas do labirinto dessa cidade. São Paulo nunca foi uma cidade de poucos obstáculos, quanto mais tamanho a cidade ganhou mais espaço para poder segregá-lo. 

Cresceu tanto, que os seus ao arredores também dependem dela. Cidades feitas para dormir, porque trabalhar só lá, lá no centro de São Paulo. Regiões dormitórios, quebradas nem tão diferentes assim, mas esquecidas. Cresci em uma delas, uma que nem a cidade de São Paulo pertence, Itapevi, fundão da zona oeste. 

Minha quebrada me ensinou como subir em pedras pra sair escorregando lá de cima, como deslizar uma ladeira de terra usando apenas uma garrafa pet, ou um papelão que não esteja molhado, como desviar dos cavalos estacionados na rua, e cuidado! não solta os cachorros não porque os carrapatos são brabos. O fundão da zona oeste me ensinou que se eu quisesse algo na minha vida, teria que gastar em passagem. 

Porque só em São Paulo que ficam as oportunidades? E a cidade da garoa me ensinou como andar na rua sem atropelar e nem ser atropelado, na verdade nem precisa olhar. Mantenha o ritmo e desvie. Quase sempre frenética. Mas pode desacelerar, caso um ônibus quebre, por exemplo. São Paulo me ensinou que o cinza tem muitas tonalidades, que os prédios têm nomes, que o tempo nunca para pra você. 

São Paulo é versátil. Acolhe todos que passam, mas vomita quem fica por muito tempo. Às vezes coloca uma colherada de esperança no pingado de todo dia, mas ela é como a mega sena, a cada um milhão de paulistas apenas meia dúzia é sorteado por dia. Quem sabe amanhã não sou eu?

Ainda sim, abraço toda hospitalidade que vem agarrada com a certidão de brasileira e comemoro calorosamente o aniversário de São Paulo, com as lembranças de quem já fui, do que já fiz e já conheci nessa cidade imensa. A mais famosa frase de Criolo cai por terra quando o brilho cinza de São Paulo mostra que o amor se mostra pelas frestas das suas ruas.


Marina Oliveira Couto

Marina é historiadora de formação, professora voluntária no Cursinho pré-universitário da Psico-USP. Escreve desde que se conhece por gente e se aproxima de reflexões que transpassam as questões raciais, gênero e socio-culturais.


Marina fez parte da terceira turma do Curso de Multimídia, realizado pelo programa de Comunicação de Geledés – Instituto da Mulher Negra.


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