A “Onda Negra”: arte visual afro-brasileira, legitimação e circulação

Alecsandra M. de Oliveira é dra. em Artes Visuais e especialista em cooperação e extensão universitária do Museu de Arte Contemporânea (MAC-USP)

Do Jornal da USP

Alecsandra de Oliveira, funcionária do Museu de Arte Conteporânea. Foto: Cecília Bastos/USP Imagem

 

Quando Picasso, Matisse, Braque e outros artistas modernos “descobriram” a arte africana, estavam entusiasmados com sua expressividade, clareza estrutural e simplicidade técnica. Os objetos africanos até então vistos como etnográficos passaram à categoria estética. A abstração e a estilização existentes na arte africana tornaram-se inspirações para novos traçados, cores, signos e, sobretudo, uma nova organização da imagem. As máscaras, as cerâmicas, a pintura e a estatuária deram força propulsora ao fauvismo, expressionismo, cubismo e outros movimentos de vanguarda (AJZENBERG e MUNANGA, 2008). Esses atributos estéticos foram “encontrados” por Picasso e seus companheiros nas diversas visitas ao Museu Trocadero e na formação de suas coleções particulares (entre os pintores fauvistas, por exemplo, Matisse, Vlaminck e Derrain colecionavam arte não ocidental). Porém, essa proximidade com os artefatos não eliminou a questão da alteridade que permeou essa produção vanguardista.Por razões, ora estéticas ora etnográficas (ou combinadas), o século XX viu a expansão do mercado consumidor de “arte primitiva” e de objetos africanos. Esse crescimento do mercado refletiu (e foi refletido) em exposições em museus norte-americanos e europeus, na disseminação de galerias especializadas e na quantidade de peças adquiridas em leilões (GOLDSTEIN, 2008, p. 290).

Em terras brasileiras, a fase pioneira do modernismo esteve dividida entre o emprego das ousadas técnicas europeias e a busca pelas origens. Para esses artistas, “o moderno” era seguir as orientações das vanguardas, mostrando a identidade local. Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Cândido Portinari e Di Cavalcanti ilustraram o cenário no qual a figura do negro surgiu, então, como “o povo brasileiro”. Nessas produções, persistia a distinção entre o “eu” e o “outro” aliada à ideia de um país “cordial” e “mestiço” (OLIVEIRA, 2017).

Quando Picasso, Matisse, Braque e outros artistas modernos “descobriram” a arte africana, estavam entusiasmados com sua expressividade, clareza estrutural e simplicidade técnica. Os objetos africanos até então vistos como etnográficos passaram à categoria estética

Nos desdobramento do modernismo, são exceções Mestre Didi e Rubem Valentim. Esses artistas incorporaram signos e tradições completamente desprovidos de exotismo: não representavam o “outro”, mas a si mesmos. Os altares de Valentim assumiram a linguagem concreta atrelada aos signos e às cores do candomblé. Mestre Didi se apropriou desses símbolos e construiu seus objetos com materiais, tais como, a palha e os búzios. No mesmo período, alguns colecionadores brasileiros, tal como Ema Klabin, iniciam a compra de arte africana. O circuito de exposições e os museus também se interessaram: na IV e na V Bienal de São Paulo (1957 e 1959), ocorreram mostras de escultura negra, o MAM RJ promoveu uma exposição de escultura africana (1957) e mais adiante, José Roberto Teixeira Leite, então diretor do Museu Nacional de Belas Artes, adquiriu a coleção africana do acervo (1964).

A reviravolta na produção de uma arte contemporânea de origem afro-brasileira teve seus primeiros indícios um pouco antes da virada do século XXI: as quebras das metanarrativas, os traços locais versus globais e as reflexões sobre o “fim da Arte” e o “fim da História” incentivaram a busca por referências e memórias, isto é, esses condicionantes levaram muitos artistas a repensarem sobre sua condição e sobre a de seu grupo. Simultaneamente, emergiu uma série de discussões com fundo social e histórico sobre a representação do negro na formação do “nacional”. Destacaram-se as efemérides ligadas ao ano de 1988 (centenário da abolição da escravatura no Brasil) e a promulgação da nova constituição brasileira.

No mesmo ano, a exposição A mão afro-brasileira, no MAM SP, reunia célebres artistas que o processo de apagamento, existente na construção da história da arte brasileira, não reconhecia como de origem negra ou mestiça, entre eles, Aleijadinho, João Timotheo da Costa e Antonio Bandeira. Em 20013, na nova edição da mostra, A nova mão afro-brasileira, no Museu Afro Brasil, os artistas históricos deram vez a novos nomes que, hoje, são agentes ativos da cena contemporânea das artes visuais brasileiras.

Durante a década de 1990, ao mesmo tempo em que se reivindicou a revisão dos papéis do negro e do mestiço na construção da história do Brasil e da arte brasileira, o movimento negro pleiteou a reparação dos danos socioeconômicos em decorrência da escravidão. Naquele momento, permanecia a luta pela valorização da cultura, da identidade, da questão jurídica, porém, sobressaíram-se as demandas de ordem material. Lembremos que, nesse momento, tivemos a instalação do neoliberalismo no país. Além do mais, diferentes sindicatos colocaram a temática racial na pauta de suas discussões.

Na mostra Brasil+500, Mostra do Redescobrimento, acontecida em 2000, a contribuição da arte afrodescendente para a formação de uma “história da arte brasileira” retornou com intensidade. E a exposição abriu uma década cercada por episódios nacionais e internacionais que reafirmaram os estudos voltados à arte africana e à arte afro-brasileira, entre esses acontecimentos estão: a abertura do Museu Afro Brasil em 2004 e a inauguração, dois anos depois, do Musée Branly. À época da formação de sua coleção, uma das críticas dirigidas ao museu francês era que este teria aquecido o mercado de compra e venda de “arte primitiva” e africana (GOLDSTEIN, 2008, p. 295). O que de fato aconteceu. Na década, contou-se ainda com os primeiros efeitos da Lei 10639/2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileiras no sistema de ensino brasileiro.

[…] as quebras das metanarrativas, os traços locais versus globais e as reflexões sobre o “fim da Arte” e o “fim da História” incentivaram a busca por referências e memórias, isto é, esses condicionantes levaram muitos artistas a repensarem sobre sua condição e sobre a de seu grupo.

Os anos de 2010 encontraram-se e continuam envolvidos pelas ideias que giram em torno do “pluralismo estético”, das “relações entre modelos estéticos e etnográficos” e da “descolonização dos acervos”. As mostras Territórios, na Pina, Diálogos Ausentes, no Itaú Cultural, além da recente Histórias Afro-Atlânticas, realizada concomitantemente no MASP e no Instituto Tomie Ohtake, revisionaram os acervos destas reconhecidas instituições e trazem à tona a discussão sobre o etnográfico, sobre a “estética do outro” e sobre os mecanismos de circulação e legitimação que são evocados, quando se trata de uma arte deslocada do eixo eurocêntrico.

Enfatiza-se, então, uma justificada resistência ao modelo etnográfico nas artes visuais, isto porque esse viés pode reiterar os traumas da “colonização do outro” (PARENTE, 2018). Essa reiteração é intensificada pela aura-fetiche atribuída àqueles que entraram nos sistemas de exposição e mercados artísticos, especialmente o mercado pode absorver e manipular esse discurso de reinvindicações, como nos alerta Tadeu Chiarelli: “é o mercado ditando: o que é arte e o que não é arte contemporânea. E alguns artistas negros se tornando os babies desse mercado. (…) E, também, é uma forma muito sutil e perversa de abafar o discurso” (apud VIANA, 2018, p. 114).

Nesse intenso debate entre aspectos etnográficos e estéticos, pesquisas sobre a arte africana que reexaminam a intepretação europeizada que essas peças receberam até os dias atuais são bem-vindas pelos artistas e por uma série de investigadores que se dedicam ao tema.  Já as referências africanas, nos trabalhos atuais, tentam reconstituir os laços perdidos pela diáspora; remontam uma memória fragmentada que nunca foi única ou inteiriça (reafirmando que o continente africano é formado por diversas etnias, dialetos e hábitos culturais e, que longe de ser único; ele é múltiplo). A procura dos afrodescendentes, em sua grande maioria, está mais no desvelar-se do que na discussão sobre “outro”. Eles arriscam-se a “fazer arte”. Essa postura de protagonismo é o “novo” que o sistema da arte quer transformar em mercadoria.

A passagem desses artistas pelas grandes exposições e por coleções reconhecidas confirma ao mercado a legitimidade desta produção. Observemos que muitos são representados por galerias expressivas; outros, tais como Bispo do Rosário e Sonia Gomes já tiveram seus trabalhos expostos em megaexposições, como a Bienal de Veneza, por exemplo. Porém, outros artistas ainda notam que o reconhecimento se dá mais facilmente na esfera internacional do que na nacional. Nesse sentido, a Sotheby´s, por exemplo, registrou, na última década, cifras altíssimas nos leilões de peças africanas. E registre-se ainda o crescente interesse de colecionadores estrangeiros pela produção artística brasileira, particularmente nas feiras, tais como, a Art Basel e a ARCO.

Diante das presentes pontuações, confirma-se que as relações entre a arte visual afro-brasileira, as instituições legitimadoras e os demais agentes do sistema da arte proporcionam uma discussão profícua e aberta às novas perspectivas. Como espectadores, resta-nos aguardar a finitude da década em curso e os desdobramentos que ela nos trará para reflexão. Longe de ser “uma onda negra”, as imbricações que envolvem esse debate e esse tipo de produção nos aproximam à imagem do “tsunami” – que nos leva todas as certezas e nos deixa com diversas possibilidades.

 

 

REFERÊNCIAS

AJZENBERG, Elza e MUNANGA, Kabengele. “Arte Moderna e o Impulso Criador da Arte Africana”. Pesquisa em Debate. Edição 9, Vol. 5, n. 2, jul/dez. 2008.

GOLDSTEIN, Ilana. “Reflexões sobre a arte ‘primitiva’: o caso do Musée Branly”. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 14, no. 29, p. 279-314, jan./jun. 2008.

OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. “Memória da Pele – o devir da arte contemporânea afro-brasileira”. Arte e Cultura da América Latina. São Paulo: Terceira Margem. Vol. XXVIII, 2º. Semestre, 2012, p. 35-42.

OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Mulheres “Negras e Perigosas”. Jornal da USP18 dez. 2017. Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/mulheres-negras-e-perigosas/. Acesso em 04 set. 2018.

PARENTE, Alessandra. “Tensas relações entre arte e política: as vanguardas e o modelo etnográfico”.  Cult. 29 ago. 2018. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/as-vanguardas-e-o-modelo-etnografico/. Acesso em 30 ago. 2018.

VIANA, Janaina Barros Silva. A invisível luz que projeta a sombra do agora: gênero, artefato e epistemologias na arte contemporânea brasileira de autoria negraSão Paulo: Universidade de São Paulo, 2018 (tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte).

VIANA, Wagner Leite. Receita para dar o troco ou para que as cicatrizes sejam marcas de esperança e superação de nossos corpos ou ainda para nos despir de violências, 2011-2018 (folheto para a performance Mau Olhado Bem Olhado).

+ sobre o tema

Em junho, Djavan fará sua estreia na Praia de Copacabana em show gratuito

O projeto TIM Music Rio, um dos mais conhecidos...

OJ Simpson é personagem central de documentário favorito ao Oscar

Todo atleta busca troféus, consagração de trabalhos que envolvem...

Bahia homenageará mês da Consciência Negra em camisa contra a Chapecoense

O Bahia aproveitará o jogo deste domingo (4), contra...

Gabriel Tchiema no Festival Internacional de Jazz de Cape Town

O proclamado Festival Internacional de Jazz de Cape Town...

para lembrar

África do Sul condena supremacista branco por plano para matar Mandela

Mike du Toit, líder do grupo racista Boeremag, que...

Festa do Boi recebe cerimônia de encerramento do programa de aceleração Quartzo

Nesta terça-feira (16), a partir das 13h, a Festa...
spot_imgspot_img

Milton Nascimento recebe título de Doutor Honoris Causa pela Unicamp

O cantor Milton Nascimento recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). A honraria foi concedida em novembro de 2024. A entrega aconteceu na casa do artista,...

Quem são os ex-escravizados que deixaram o Brasil em direção à África no século 19

Em seu mais recente livro, o pesquisador Carlos Fonseca conta a trajetória dos retornados, escravizados libertos e seus descendentes que deixaram o Brasil e retornaram...
-+=