A ONG SaferNet Brasil, dedicada à defesa dos direitos humanos na internet recebeu quase 90 mil denúncias relativas a racismo e homofobia

Estudiosos refletem sobre como simples diferenças entre as pessoas podem se transformar expressões de violência na web

Por: Breno Pessoa –  Diário de Pernambuco 

No futuro distópico de 1984, a população se reunia nas ruas para os “dois minutos de ódio”, momento do dia dedicado a insultar aqueles considerados ameaça para a sociedade. A expressão de fúria vista no livro publicado por George Orwell em 1949 não parece tão diferente da prática do atual discurso de ódio na internet. Mas, enquanto na ficção o inimigo era um só, na realidade os alvos podem ser diversos.

É fácil esbarrar, na web, em conteúdos que possam ser classificados como discurso de ódio. A ONG SaferNet Brasil, dedicada à defesa dos direitos humanos na internet, recebeu, apenas em 2015, quase 90 mil denúncias relativas a racismo (55.369), homofobia (4.252), intolerância religiosa (3.626), neonazismo (1.283), xenofobia (5.536) e apologia ou incitação à violência (19.839). A entidade não contabiliza ofensas pessoais, outra espécie de injúria no meio digital.

Ataques direcionados, aliás, são um problema que o jornalista e doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP) Leonardo Sakamoto lida com frequência. Alvo de ataques virtuais por causa de posicionamentos considerados de esquerda, costuma receber os mais variados impropérios por conta das postagens nas redes sociais e no Blog do Sakamoto, dedicado a questões humanitárias e políticas.
Ele abordou a problemática da intolerância no campo virtual no recém-publicado O que aprendi sendo xingado na internet (Leya, 160 páginas, R$ 29,90), livro que o autor lança no Recife na quinta-feira, na Livraria Cultura do RioMar, às 19h.

“Quando algumas pessoas entram em contato com o que é diferente do seu pensamento, acham que o outro está errado”, opina o jornalista, completando que a violência verbal é uma das respostas encontradas por quem não está acostumado com o diálogo saudável e debate de ideias. “Pessoas que são violentas online geralmente não conseguem ser assim no offline. O anonimato traz coragem”, destaca.
“O ambiente virtual não garante empatia, não estamos preparados para reconhecer o semelhante na rede”, opina o autor, que também é diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão. A saída, acredita Sakamoto, é manter o bom senso: “Quando se tem paciência para ler, escutar e avaliar os argumentos, você gera um laço de respeito, mesmo quando se continua discordando”.

A filósofa Marcia Tiburi foi mais uma que se debruçou recentemente sobre o tema, embora não especificamente na âmbito digital, em Como conversar com um fascista (Record, 196 páginas, R$ 42). O fascista que dá título ao livro é o que a autora classifica como “tipo psicopolítico bastante comum”, que perdeu a dimensão sobre como dialogar.

Para a escritora, “o fascista não consegue relacionar-se com outras dimensões que ultrapassem as verdades absolutas nas quais ele firmou seu modo de ser. Falta de abertura e um ponto de vista fixo que serve de certeza contra as pessoas que não correspondem à sua visão de mundo preestabelecida”.

O pensamento de Tiburi é similar ao de Sakamoto: a autora considera que o cerne da questão está no não reconhecimento do próximo como um igual: “O outro é reduzido a uma função dentro dentro do círculo no qual o fascista o enreda”, opina.

Principais plataformas para manifestações de ódio ou intolerância, Facebook, Twitter e YouTube ainda não têm, no Brasil, políticas específicas para combater publicações consideradas nocivas, embora os usuários possam denunciar postagens, páginas ou qualquer material veiculado em postagens. Em maio, as três empresas, junto com a Microsoft, se comprometeram a analisar mais rapidamente as denúncias e criar dispositivos em suas comunidades para barrar esse tipo de conteúdo. As medidas, por enquanto, valem apenas no países integrantes da União Europeia.

Homofobia
O Brasil é um país com histórico de homofobia. Segundo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), 318 gays foram mortos no país no ano passado. Em 2014, a ONG registrou 326 assassinatos do tipo. A intolerância também é vista no ambiente virtual. O recente massacre em boate gay de Orlando (EUA) repercutiu nas redes sociais e áreas de comentários de portais, com usuários apoiando o atirador, que matou 49 pessoas no dia 12 de junho.

Misoginia
Apologia ao estupro, declarações sexistas e pedofilia fazem parte do repertório do discurso de ódio às mulheres. Em maio, a divulgação, nas redes sociais, do estupro coletivo sofrido por adolescente de 16 anos trouxe à tona tentativas de culpar a vítima e incitar a violência contra o sexo feminino. O site estuproverbal.com registra, em tempo real, mensagens publicadas no Twitter com termos ofensivos como “vagabunda” ou “safada”.

Racismo

Apesar de o Brasil ter a maioria da população negra (54%, segundo IBGE, em 2015), o racismo tem espaço online e offline. Em maio, a cantora Ludmilla foi uma das vítimas, quando o internauta Helder Santos fez o seguinte comentário no perfil do Instagram da cantora: “Odeio essa criola, nojenta, a feiosa se acha”. As atrizes Sheron Menezzes e Taís Araújo e a jornalista Maria Júlia Coutinho também sofreram hostilidades
nas redes sociais.
Xenofobia
O aumento da imigração na Europa tem reacendido expressões xenófobas contra sírios, muçulmanos e outros grupos, nos mais diversos meios. No Brasil, a intolerância em relação ao estrangeiro é menor, mas o preconceito contra nordestinos continua sendo prática comum no campo virtual. Uma simples busca pelos termos “Nordeste” ou “nordestino” tem grandes chances de trazer resultados com declarações ofensivas.

Intolerância religiosa
O sincretismo religioso é comum no Brasil, assim como a intolerância à diversidade de crenças. O preconceito é plural e atinge muitos credos, embora as religiões afro-brasileiras sejam o principal alvo. Os casos de agressões virtuais costumam estar relacionados também ao racismo, provavelmente a principal causa do preconceito com o candomblé e manifestações de origem africana ou afrodescendente.

Cyberbullying
Podendo abranger os mais diversos tipos de discurso de ódio, o cyberbullying tem como alvo um único indivíduo e tem como finalidade ofender ou desmoralizar ou expor alguém ao ridículo. O problema afeta sobretudo os mais jovens e um estudo divulgado em 2015 pela Intel Security apontou que, no Brasil, 66% das crianças e adolescentes entre 13 e 16 anos já presenciaram casos de agressões nas redes sociais e 21% deles foram vítimas.

 

ENTREVISTA | Leonardo Sakamoto 

 

Como você lida com ataques? Trouxeram algum impacto no seu dia a dia?
Dependendo do tipo de ataque, vai ter consequências diferentes. No caso dos xingamentos, não me afetam em nada. Eu acabei criando uma casca grossa. Já as difamações maiores, que começam espontaneamente ou orquestradas, causam transtorno e acabam transbordando para fora da internet. Já fui xingado, cuspido e agredido fisicamente na rua. Alguns, inclusive, já chegaram a ameaçar de morte. Acontece que fui aprendendo ao longo do tempo a ter paciência para lidar, para tentar educar as pessoas a respeito disso.

Vivemos uma era de grande polarização política e social. Podemos tirar algo de positivo da situação?
É uma questão mundial. Ao mesmo tempo que há avanço progressista, há o avanço do conservadorismo reacionário. Os partidos utilizaram de táticas muito violentas para incendiar a sociedade, como vimos nas eleições de 2014, criando uma guerra virtual. Eu não acho ruim que existam polos, prefiro o debate aberto, público, aos debates às escondidas. É importante que todo mundo fale. Caso o contrário, não vamos evoluir. Acredito que vamos chegar em uma fase adulta, de ouvir o outro, com a capacidade de dialogar. Só que temos pressa, porque queremos uma solução no tempo da nossa vida. No entanto, o tempo histórico é muito mais lento. Podemos contribuir, catalisar mudanças, mas não podemos ignorar que o processo é lento. O debate público vai piorar bastante, até que melhore.

Por que é tão fácil cair na violência verbal em debates na internet?
Eu tento entender caso a caso. A internet não está separada da vida offline, é uma outra plataforma, não é indissociável. Ela aproxima pessoas de um jeito que antes não era possível e isso acaba acelerando esse debate. A internet não criou a direita ou a esquerda, quem cria o movimento são pessoas. São elas mesmas que acabam utilizando a rede para confrontar. Mas redes sociais não foram criadas para o debate público. O Facebook não é planejado para o debate. O que o algoritmo do Facebook traz para as nossas timelines é o conteúdo de pessoas que pensam parecido e concordam entre si, criando bolhas. Só que o mundo não é feito de concordância, mas, sim, de dissonância. Mas acho que a internet trouxe mais conquistas do que problemas. Quem não estava acostumado ao debate público entrou na rede e se assustou quando entrou em contato com pessoas de pensamentos diferentes, não tinha ideia de como agir.

Onde termina a liberdade de expressão?

As pessoas têm direito de falar qualquer coisa. A censura prévia não deve ser aceita, nem o cerceamento dos direitos. Mas liberdade de expressão não é um direito fundamental absoluto. Nem o direito à vida é, tanto que existe o direito à legítima defesa. Quando a expressão atinge e agride alguém, ou a fala incita a violência, é preciso punir, civil e criminalmente, o autor. Pois, a partir do momento em que alguém abusa da liberdade de expressão, indo além de expor a opinião, espalhando o ódio e incitando a violência, pode trazer consequências mais graves à vida de outras pessoas.

Pela pluralidade do pensamento

A livre expressão, sem censura, de qualquer tipo de fala, inclusive as consideradas odiosas, pode ter seu lado positivo, acredita o juiz Max Paskin Neto, autor de O direito de ser rude (Bonjuris, 192 páginas, R$ R$ 44,90). “Quando se protege um discurso desagradável, se protege tudo que vem antes de se chegar a esse limite”, opina.

Liberal declarado, o jurista defende a existência do discurso odioso como garantia da pluralidade de pensamentos. Paskin Neto considera que um dos entraves para restringir esse tipo de conteúdo é a subjetividade envolvida e que medidas para inibir essa prática poderiam resultar em restrições à liberdade de expressão. “A sociedade fica hipócrita se você cerceia algum tipo de discurso. É menos mal permitir que se fale quase tudo do que restringir que se fale ‘isso’ ou ‘aquilo’. Quem vai ser o árbitro do que pode ser ou não dito?”, questiona.

Expressões preconceituosas ou puramente ofensivas direcionadas a grupos, em casos de homofobia, racismo ou intolerância religiosa são, na opinião do autor, parte do processo democrático. “Neutralidade tem a ver com regimes totalitários”, afirma. Ele usa como exemplo a questão do antissemitismo: “É um absurdo. Qualquer tipo de fobia, a princípio, não está certa”, destaca o autor, que é judeu. Mas ele completa que a abertura a todos os tipos de discursos, por mais desagradáveis que sejam, pode trazer aprendizado para a formação de uma sociedade mais madura.

“Uma sociedade que não se machuca, que não admite, além do formalismo, um discurso diferente, não é verdadeiramente democrática”, opina Paskin Neto, que faz ressalvas quando as falas incitam diretamente a violência a uma pessoa e podem resultar em danos à integridade física. Nesses casos, ele defende algum tipo de censura no conteúdo.
O juiz sugere que quem se coloca como propagador do ódio já está, automaticamente, sujeito à censura moral e ao descrédito profissional que podem advir das declarações. Paskin reforça que o tipo de postura em redes sociais trazem algo positivo, que é o contraste de ideias e que as respostas em oposição são suficientes para enfraquecer o discurso do ódio. “Deixe os discursos se combaterem entre si, a verdade há de se vencer”, acredita.

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