ONG usa filosofia contra violência doméstica

Coordenador diz que reincidência é baixa e participantes sugerem que ‘terapia’ seja adotada oficialmente pelo governo

Por Vasconcelo Quadros e Ana Flávia Oliveira

Em uma das salas de uma casa na região de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, um marceneiro, que faz trabalhos artesanais em casa, um zelador, um porteiro, um motorista e fiscal de uma empresa de ônibus se encontram pela segunda vez na vida.

Sentados em um círculo, eles conversam por duas horas entre si e com o filósofo e sociólogo Sérgio Barbosa, que media o encontro. Poderia ser apenas mais uma reunião entre amigos, mas não é. O principal assunto é o preferido da maior parte dos homens: a mulher. Mas, diferente de parte das conversas de bar, esses profissionais discutem o papel da mulher e do homem na sociedade atual e tentam, ao longo das 16 sessões que são obrigados a frequentar o grupo, discutir o tema até conseguirem descontruir a ideia do machismo ainda presente neles e na sociedade.

Os quatro participantes chegaram a sede da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde encaminnhados pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra Mulher da Barra Funda após terem se envolvido em violência dentro de casa. Um deles agrediu a enteada, o outro a mulher e a enteada e os outros dois, as mulheres.

Com o compromisso de não dar nomes, o iG acompanhou a segunda sessão do grupo de uma nova turma. Os integrantes são trabalhadores, homens de boa índole e pais de família que, de repente, se viram envolvidos numa cilada cuja motivação e reais consequências ignoravam.

Barbosa abre a conversa com uma pergunta genérica: O que é ser homem na sociedade?  “É ser responsável, viver com coragem, amor e respeito ao próximo”, responde o motorista. “É o homem quem orienta os filhos sobre as ruas, respeito e responsabilidade”, complementa o zelador.

Desenvolve-se a partir daí um longo diálogo sobre o papel do homem como provedor. Os quatro parecem já ter desenvolvido empatia e cumplicidade quando o tema é a “injustiça” e a “desnecessidade” de terem sido enquadrados na Lei Maria da Penha. Afinal, ainda que tenham cometido uma agressão, se acham responsáveis pela manutenção da família.

O filósofo então inverte a mão. Pergunta o que representa a mulher na sociedade. A resposta dos quatro é praticamente a mesma: cuidar da casa e dos filhos. “Mas os dois têm os mesmos direitos?”, provoca o mediador. “A gente se baseia na mãe da gente…”, diz o zelador. O marceneiro, um peruano de formação militar, lembra que o machismo é um traço antigo e predominante na América Latina. “O homem é mandão”, completa o zelador. “Há muito machismo que ainda não foi erradicado”, sentencia o motorista.

‘Mulher pode ir sozinha para balada?’

O filósofo aponta então a desigualdade nas relações e cutuca: “E se a mulher decidir ir sozinha a um bar ou a uma balada?”. Os quatro se mexem desconfortavelmente nas cadeiras, concordam que, em tese, a mulher teria esse direito, mas depois recorrem ao velho recurso: “A sociedade acha que mulher casada que vai sozinha ao bar ou balada não presta”, defende-se o zelador. “A tradição das baladas começou com os homens”, ensina o motorista. “Natural não é”, completa o porteiro.

A conversa começa com trivialidades, passa para análise, conceituações, novos papéis do homem e da mulher para, então chegar ao ponto que desagrada os homens: a nova mulher conquistou espaços e isso, em qualquer camada, estressa o homem e torna relação conflituosa. O homem, que já vem sendo espremido, não aceita ser encurralado numa discussão.

“Mulher não pode enfrentar”, diz o zelador. “Elas gostam de medir a ‘febre’ da gente”, corrobora o motorista. “Têm mordomia, não pegam o ‘busão’”. Cheguei eram 10h e ela ainda dormia. Passou a noite na internet”, protesta o porteiro. O peruano reclamou que a enteada o debochou.

O filósofo explica que a palavra violência se origina do grego. Seu significado é força e energia para mover obstáculos. No português, a violência ganhou conotação de agressão que, na essência, tem também outro sentido. “É a perda de controle”, responde o zelador. O filósofo faz com que todos percebam que a perda de controle também se estabelece quando um quer controlar o outro. Acaba arrancando uma profusão de surpreendentes exemplos.

“Quando a gente diz para a mulher que ela não precisa sair para comprar o açúcar, está tentando controlar”, observa o porteiro. “Se a mulher diz ao vizinho que ele só pode estacionar o carro na garagem se falar antes com o marido, também está concordando que é controlada”, diz o zelador. “Amar também se torna um ato de controle se não tomar cuidado”, filosofa o motorista. De repente parece que todos percebem a contradição: a explosão de violência é a perda de controle de si, do outro e da situação.

E quando se chega a esse ponto, o custo é elevado: “É o fim de tudo”, conclui o zelador, sob a concordância de todos. A sessão deixa aos quatro a constatação de que ao assumir sozinho o mando da casa, o homem cai na armadilha e, sem o controle, descamba para a violência.

Ainda que se sintam “vítimas” de uma lei “injusta”, todos se dizem arrependidos e voltariam no tempo para se corrigir. São pessoas de vida simples, que destoam da tradicional clientela da justiça. O grande pecado aparente é a falta de reflexão sobre atos do dia a dia das relações, como entender que atitudes intempestivas ou extremadas geram a violência – uma opção tão desnecessária quanto democrática na distribuição de seus efeitos nocivos. Um deles, por exemplo, amargou 40 dias de cadeia.

Luz no fim do túnel

O tratamento é uma luz no fim do túnel. O motorista, que vive o estresse do trânsito paulistano, contou que ao deixar a primeira sessão, há duas semanas, sentiu-se tão aliviado que, ao ter seu carro fechado, deixou o outro passar com uma tranquilidade que nunca havia experimentado. “Em outro momento, teria ido pra cima”, contou.

Animados com os efeitos do programa, os quatro participantes sugerem que o tratamento faça parte de um programa preventivo do governo para orientar a população e, assim, evitar que as contradições de uma cultura impregnada de machismo e autoritarismo se transformem em casos de polícia.

“Para eles pode ser uma terapia. Para nós é reflexão”, diz o filósofo Barbosa. Segundo ele, o índice de reincidência é baixissímo. “A gente só sabe se ele de fato comete violência novamente ao sair daqui, se houver nova denúncia. Mas de 162 homens atendidos, apenas três voltaram”. Antes do programa, segundo ele, a reincidência beirava a 70%.

Num país com níveis escabrosos de violência social, de caótico sistema penitenciário e de elevado sentimento de punição, a justiça parece ter enxergado pelo menos uma fresta numa janela que os gregos desenvolveram há dois milênios e meio: a reflexão filosófica para tratar problemas de relacionamento é mais eficaz que cadeia.

 

 

 

Fonte: iG

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