ONU alerta para lacunas nos processos judiciais de racismo em Portugal

O Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas está preocupado com o uso excessivo da força pela polícia portuguesa contra pessoas de minorias étnico-raciais, sobretudo de origem cigana e afrodescendente. E aconselha o uso de câmaras no corpo dos agentes durante as operações policiais.

É motivo de preocupação da ONU o facto de estes crimes, praticados pela polícia ou cidadãos, não estarem a ser “adequadamente investigados”, bem como o baixo número de condenações reportadas. De 2009 a 2018 o Ministério da Justiça não registou condenações por racismo, como noticiou o PÚBLICO em Fevereiro.

Na sua mais recente avaliação periódica, a quinta, concluída no final de Março, este órgão elenca também várias falhas nos mecanismos de punição da discriminação em Portugal: das disposições legais e queixas, da investigação à formação de pessoal e ao discurso de ódio.

No documento, que foi produzido já depois de integradas as respostas de várias entidades oficiais portuguesas, a comissão alerta para “a persistência de casos de violência policial contra pessoas de minorias étnicas, em especial pessoas ciganas e afrodescendentes”.

Escreve-se: “Apesar das explicações da delegação portuguesa, a comissão nota preocupação com o facto de os agentes policiais destacados para zonas habitadas por pessoas de minorias étnicas não serem suficientemente treinados”.

Portugal não segue ONU nas recomendações sobre racismo

Aconselha o país a assegurar que os mecanismos de queixa estejam a funcionar, que todas as queixas são sistematicamente investigadas devidamente e que quando forem confirmadas desencadeiem “uma punição proporcional”.

Destacando o respeito pela privacidade, aconselha o uso de body cameras nos agentes, além de formação “para erradicar estereótipos e a discriminação de minorias étnicas”.

A preocupação da ONU com a violência racial entre polícias estende-se também ao uso excessivo da força por funcionários durante as detenções e interrogatórios nos espaços em que eles ocorrem. Este órgão lamenta o baixo número de processos e de condenações e sublinha a ausência de informação sobre as indemnizações atribuídas a vítimas

Assegurar a prontidão, imparcialidade, profundidade e efectividade das investigações sobre alegados usos excessivos de força por agentes das forças de segurança é o que Portugal deveria fazer, aconselha.

Do lado português, respondeu-se à ONU que todas as queixas contra agentes foram devidamente investigadas. Em 2018 e 2019 havia uma dezena de registos em que apenas cinco tiveram processo disciplinares mas foram depois fechados sem acção subsequente, vê-se numa das respostas. Também a GNR relatou três casos de discriminação entre os seus guardas em 2018 e 2019, referiu um representante.

Em dez anos, segundo o estudo COMBAT, da Universidade de Coimbra, nenhum polícia foi condenado por racismo. Este estudo analisou queixas e processos entre 2006 e 2016.

Sistema judicial devia ter formação

Mas as preocupações da ONU sobre o racismo em Portugal não se restringem às polícias. Alerta ainda, na sociedade, para a intolerância, os crimes e o discurso de ódio contra grupos minoritários incluindo ciganos, afrodescendentes, muçulmanos, lésbicas, gays, bissexuais e transgénero.

O baixo número de queixas e de informação sobre condenações por crimes de ódio e das penas aplicadas, cobertas pelo segredo estatístico, são igualmente questões preocupantes, refere. Por isso, aconselha o reforço ao combate a intolerância e discriminação assim como a formação de agentes das forças de segurança, magistrados e profissionais do sistema judicial, fazendo campanhas e encorajando as denúncias. Apela ainda ao reforço dos meios de investigação, à garantia de que ela é feita e que os criminosos são punidos.

Os peritos da ONU congratulam a criação da nova lei de combate à discriminação em 2017 que pune o racismo com multas, mas preocupa-os o facto de o artigo 240 do Código Penal — que criminaliza a discriminação — restringir este crime a “actividades de propaganda organizada” e não incluir o incitamento à discriminação praticado numa base individual. O mesmo artigo 240 também não cobre discriminação com base na linguagem tal como é requerido pela Convenção dos Direitos Humanos, da qual Portugal é signatário.

Portugal deveria, assim, proceder a uma alteração deste artigo e garantir que a sua aplicação protege os cidadãos “da discriminação, por todos os meios, e em todas as esferas e sectores, incluindo o incitamento à discriminação”. A ONU sublinha a importância de as vítimas de discriminação terem acesso a compensações, protecção e garantia do direito à intervenção processual.

Segundo a resposta de Portugal, os artigos 132 e 145 do Código Penal contemplam o racismo como circunstância agravante, por exemplo, no homicídio qualificado e, embora a lei portuguesa não proíba explicitamente a discriminação com base na linguagem, isso é punido pela Convenção de Protecção de Direitos Humanos e Fundamentais que Portugal ratificou — o que não chega para constituir crime.

Recolha de dados devia ser feita

Tal como o faz há anos através de outros órgãos, neste relatório a ONU volta a aconselhar a recolha de dados sobre minorias étnico-raciais entre a população “de modo a monotorizar o usufruto de todos os direitos e liberdades pelas minorias”.

Mas este procedimento não é consensual pelos riscos de utilização indevida destes mesmos dados. No ano passado, a proposta de um grupo de trabalho nomeado pelo Governo para introduzir uma questão no próximo censos que aferisse a composição étnico-racial da população foi chumbada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).

Outra das questões avaliadas na questão da discriminação de população afrodescendente e cigana foi o impacto de programas em Portugal para melhorar a situação da população cigana e afrodescendente: a comissão refere que há relatos de que continuam a sofrer discriminação especialmente nas áreas da educação, habitação e emprego. E diz que são preocupantes as elevadas taxas de abandono escolar e de desemprego entre pessoas destas comunidades. Volta a apelar à necessidade de investigação das queixas e sugere a adopção de medidas que garantam o acesso ao mercado laboral e à escola até ao final do ciclo.

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