5. A Produção Africana de Cativos Coloniais
O tráfico transatlântico
Em mais de três séculos e meio, o tráfico transatlântico arrancou do continente negro talvez quinze milhões de homens e mulheres, em geral muito jovens, no maior deslocamento forçado e permanente de trabalhadores conhecido pela humanidade. Esse processo multitudinário foi possível apenas devido sobretudo à importante população africana disponível, posta à disposição do tráfico por importantes instituições africanas. A cor da pele não teve qualquer interferência inicial nesse processo, de sentido essencialmente social e econômico. O racismo anti-negro foi conseqüência e jamais causa do tráfico e da escravidão americana.
No século 15, por razões sanitárias, econômicas, de comunicação etc., era o interior – e não as costas – a região mais densamente habitada da África Negra. Nesse então, em forma geral, as sociedades negro-africanas praticavam múltiplas formas de organização familiar-aldeã [modo de produção aldeão-doméstico, segmentar, de linhagem etc.], sobre as quais se levantavam pequenos, médios e grandes Estados. Em raras regiões esboçava-se apenas a propriedade privada da terra. Bem comunal, a terra era possuída e explorada pela comunidade aldeã, que a disponibilizava para todos os seus membros plenos.
As aldeias africanas constituíam-se a partir de múltiplas famílias ampliadas, formadas pelo patriarca, suas esposas, filhos, noras, netos, agregados. A família celular e a divisão sexual do trabalho desempenhavam função de base nessa organização social. Era mais comum que a mulher se dedicasse à agricultura enquanto o homem praticava a caça, a pesca, a grande coleta, a guerra etc. O homem rico possuía diversas esposas e muitos filhos; os jovens esforçavam-se para conseguir uma esposa e fundar uma família.
Nas aldeias, um patriarca exercia o poder político, pouco se diferenciando dos outros membros da comunidade. Nas federações de diversas aldeias – cheferias –, o mando era monopólio de membro de famílias aristocráticas, que se apartava crescentemente da produção, segundo seu maior ou menor poder. Pequenos, médios e grandes Estados praticavam a tributação do comércio, do direito de circulação, das comunidades aldeãs etc. Os suseranos africanos, pertencentes a famílias singulares, apoiavam seus poderes na tributação da comunidade familiar-aldeã, do comércio e da mineração, sobretudo.
O núcleo familiar-aldeão possuía acesso pleno à terra e orientava sua produção para a subsistência. Em geral, todas as famílias produziam os mesmos produtos. Realidade que limitava fortemente as trocas inter-familiares e inter-comunitárias. O comércio local, regional e internacional intercambiava sobretudo a produção dos setores especializados, ou seja, de produtos não produzidos localmente pela economia aldeã – caça, pesca, peixe, sal, cola etc.
O casamento delimitava as obrigações dos esposos, desequilibradas em favor dos homens. Mesmo não constituindo sociedade classista, a organização familiar-aldeã praticava a exploração das esposas, dos filhos, dos agregados em favor dos patriarcas, dos homens e dos esposos. As trocas matrimoniais davam-se entre as famílias e aldeias, preferindo-se as esposas de comunidades distantes, mais flexíveis às exigências dos consortes e de seus parentes, pois não podiam se apoiar em seus familiares.
Não havia espaço social para membros não vinculados a uma comunidade aldeã. Órfãos, prisioneiros, refugiados etc. eram inseridos em uma família ampliada, em situação de subordinação, como filhosdo patriarca, a quem deviam obrigações, das quais não se livraram sequer relativamente ao se casarem. Seus filhos seguiam sendo filhos do patriarca e não dos pais biológicos. A distância da região natal de um agregado dificultava uma fuga e aumentava seu valor.
A comunidade aldeã não conhecia a prisão, praticando como penas as multas, a morte, a perda da liberdade etc. Aldeões e aldeãs condenados por feitiçaria, adultério, mortes, dívidas etc. perdiam a liberdade e eram introduzidos em importante sistema de trocas que tendia a afastá-los, como as esposas, de suas regiões natais, para serem incorporados a famílias ampliadas como agregados. Esse movimento tendia a aumentar a produtividade da força do trabalho, ao radicalizar o grau de exploração dos indivíduos objetos desse processo. Esse movimento abria caminho da sociedade africana em direção à sociedade de classes.
Essa situação de dependência não pode ser identificada à escravidão. Os deveres do agregado para com o patriarca eram delimitados consuetudinariamente. O cativo incorporado a uma família ampliada como agregado podia casar, ter filhos, nos limites assinalados. Sua servidão –relativamente branda – extinguia-se na terceira ou quarta geração, ao diluir o estranhamento comunitário dos descendentes dos seus descendentes, permanecendo apenas uma origem genealógica desabonadora, já que não entranhada profundamente no passado comunitário local.
Com a organização do tráfico atlântico, importante parte da multitudinária circulação de esposas e, sobretudo, de cativos, foi desviada do interior para as feitorias européias da costa, para ser enviada às Américas, para conhecer o inferno da escravidão colonial. A produção de cativos, através de razias, de assaltos, da aplicação patológica da Justiça etc., por africanos, envolveu enormes regiões da África Negra, que perdeu para as Américas multidões de seus mais jovens e saudáveis filhos. Nas costas africanas surgiram poderosos Estados africanos destinados à captura e exportação de cativos, que se locupletaram da expatriação de milhões de cativos para as Américas – Daomé, Oió, Benin etc.
6. Feitorias, Castelos e Negociantes Africanos
No início da expansão marítima, nas costas atlânticas do Saara, os lusitanos desembarcavam seus cavalos e atacavam acampamentos de nômades berberes para obterem alguns cativos. Ao avançarem ao longo da costa, abandonaram esses métodos rústicos de aprisionamento. As populações saarianas afastavam-se do litoral, dificultando a captura de cativos e o comércio. Já na África Negra, as populações tornaram-se mais abundantes e belicosas. Os portugueses levavam comumente mais pancadas do que distribuíam.
Desde meados do século 15, os lusitanos estabeleceram o forte de Arguim, ao norte do rio Senegal, transformando a Alta Guiné no maior centro de captação de cativos, agora comprados às comunidades africanas da costa, que os traziam de regiões próximas e distantes do interior. O padrão mercantil lusitano de obtenção de cativos foi imitado pelas demais nações européias. Até o fim do tráfico transatlântico, em 1867-8, os europeus simplesmente compraram cativos de senhores e negociantes africanos, nas feitorias, presídios e castelos do litoral. Navios fundeados ao largo das praias embarcavam igualmente cativos. O tráfico foi sempre uma questão econômica e de classe, e jamais fenômeno étnico exclusivamente europeu.
As feitorias mais pobres eram dirigidas pelo feitor, europeu ou mestiço, secundado por um escrivão europeu e ajudantes africanos. As rústicas instalações eram cercadas por um muro de troncos, por uma cerca de espinho, por uma simples vala, que as protegiam de ataques e dificultavam a fuga dos prisioneiros. No portão principal, permanecia um velho canhão voltado para o interior do cercado. Uma torre de madeira controlava o mar e as vizinhanças. As cabanas do feitor, dos ajudantes e dos comerciantes eram de adobe, chão batido e cobertas de palha.
O barracão dos prisioneiros era uma simples cobertura, sem paredes, cercado por uma segunda paliçada, onde os cativos permaneciam atados a uma corrente, presa a dois pilares. As mulheres e as crianças circulavam no interior do cercado dos barracões. Era dura a vida espiritual e material do cativo à espera do embarque. A mortalidade era elevada. Na costa, os alimentos eram escassos e caros. Os cativos passavam fome ou comiam mal. À espera dos tumbeiros, trabalhavam em roças de subsistência. Eram também obrigados a se exercitar e a se banhar, em grupo, no mar, onde lavavam os olhos e a boca, com a água salgada, para prevenir as oftalmias e o escorbuto.
As feitorias simplificavam e rentabilizavam o tráfico, aproximando os comerciantes africanos e os tumbeiros. Comerciantes africanos chegavam do interior, sozinhos ou em caravanas, trazendo arroz, cera, marfim, ouro, peles, pimenta, penas de animais, óleo de palma etc. e sobretudo cativos. Os feitores deviam ter os barracões repletos de prisioneiros quando da chegada dos tumbeiros que, em geral, abasteciam-nos com as mercadorias exigidas pelos africanos – álcool, algemas, armas, espelho, ferramentas, fumo, grilhões, ouro, pólvora, tecidos, barras de ferro etc. Os tumbeiros demoravam-se nas inseguras e insalubres praias apenas o tempo de desembarcar as mercadorias e embarcar a carga humana. Não raro, esperavam de quatro a cinco meses para que cativos chegassem do interior e fossem negociados nas feitorias.
A construção de uma feitoria exigia capitais reduzidos e podia ser transferida facilmente, quando os cativos escasseavam ou encareciam. Os castelos eram construções poderosas e caras permanentes mantidas pelas Coroas européias e por companhias monopolistas. Tinham altas muralhas, torres, pátios internos, vastos armazéns, potente artilharia, guarnição européia e africana. Elas serviam também como apoio à navegação nesses remotos mares. Era ilusório o poderio dos castelos, situados a milhares de quilômetros da Europa. Sua segurança dependia dos senhores africanos da região, que exigiam taxas e tributos para simplesmente não impedir que as caravanas chegassem do interior. Apenas as praias da Costa de Marfim tiveram 23 castelos e fortes em funcionamento.
Desde fins do século 15, em Angola e Moçambique, os lusitanos iniciaram pioneira e isolada penetração dos sertões africanos. Para garantir a chegada de cativos e mercadorias na costa, fundaram pequenos presídios ao longo do curso de rios como o Kuanza e o Zambeze. Essas pequenas feitorias militarizadas tributavam e comerciavam com as populações do interior para obterem cativos e mercadorias. Senhores africanos resistiram a essa penetração portuguesa, para não perderem o controle do tráfico. A célebre rainha Nzinga Mbundi resistiu tenazmente ao domínio lusitano das rotas do tráfico do interior angolano. Quando os portugueses reconheceram-na como intermediária no comércio maldito, converteu-se ao cristianismo e adotou o nome português de Ana de Souza. Paradoxalmente, essa escravista africana tem sido objeto de homenagens no Brasil, mesmo por organizações negras – filmes, contos etc.
É enorme ingenuidade se surpreender, indignar ou negar o fato de que, na África, o comércio de cativo dependeu essencialmente de senhores e de comerciantes negros ou africanos, que se mantiveram indiferentes à sorte de indivíduos tidos como seus patrícios. Não havia e não podia haver solidariedade geral, nacional, continental e sobretudo racial entre os africanos. Em verdade, as categorias africano ou negro eram exteriores às práticas do continente. Elas não descreviam relações sociais objetivas daquele contexto.
Na África da era do tráfico, as populações do continente organizavam-se segundo os múltiplos recortes familiares, aldeãs, comunitárias, no contexto de hierarquizações sociais que se fortaleceram e se perverteram fortemente, nas regiões envolvidas pelo comércio negreiro. O aristocrata e o comerciante africano não se identificavam minimamente com um aldeão reduzido à situação de cativo, mesmo quando tinham vínculos comunitários e étnicos próximos. A maior parte das populações direta ou indiretamente envolvida pelo tráfico jamais vira um branco, antes de chegar eventualmente ao litoral. Não existe base real para as atuais propostas de identidades e culturas africanas supra-sociais.
Mário Maestri, 62, é professor do curso e do programa em pós-graduação em História da UPF. É autor, entre outros trabalhos, de O escravismo antigo e O escravismo brasileiro, publicados pela Editora Atual.
Fonte: Correio da Cidadania