“Não comemoro o Natal porque dia 25 é meu aniversário”, brinca o professor de história Carlos Machado, de 48 anos, em São Paulo. A risada cessa e uma nova justificativa surge. “Desde os 17 anos questiono o legado eurocêntrico que o povo negro, de maneira violenta, foi forçado a aceitar.”
Por Guilherme Henrique, Da BBC Brasil
Há mais de uma década, Carlos reúne amigos e familiares para celebrar o Kwanzaa. A festa, criada em 1966 pelo professor e ativista americano Maulana Karenga, se opõe ao Natal e procura fortalecer os laços da comunidade negra ao abordar aspectos culturais, econômicos e políticos.
Em 1965, os Estados Unidos viviam um período de muita turbulência nas relações entre negros e brancos. As leis de segregação racial geravam confrontos violentos, quase sempre resultando em mortos.
Um deles, em novembro daquele ano, ficou conhecido como os Tumultos de Watts. Em 11 de agosto, Marquette Frye, jovem negro de 21 anos, foi detido por policiais brancos no distrito de Watts, em Los Angeles, acusado de dirigir embriagado.
As circunstâncias envolvendo a abordagem causaram revolta na população negra e levaram a seis dias de conflitos nas ruas, que terminaram com um saldo de 34 mortos e mais de mil feridos. A tragédia serviu como impulso para Karenga criar a cerimônia.
“Kwanzaa é uma resposta à invisibilidade do calendário preto. Ao longo da história dos Estados Unidos, a representação cultural dos afro-americanos não se refletiu nos feriados e rituais anuais do país”, explica Keith Mayes, professor do Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Minnesota.
“A celebração serve para abordar a crescente conscientização cultural que os negros desenvolveram sobre a África.”
Misto de culturas
Para criar a data, Karenga decidiu utilizar nomes e expressões derivadas do suaíli, língua falada em diversos países da África, como Quênia, Tanzânia e Uganda, mas que representa um misto de diversas culturas pan-africanas.
Entre os dias 26 de dezembro e 1º de janeiro, sete princípios, conhecidos como Nguzo Saba, são evocados e discutidos entre os presentes.
São eles: Umoja (união); Kujichagulia (responsabilidade com o próprio futuro); Ujima (trabalho coletivo na comunidade); Ujamaa (economia cooperativa); Nia (propósito de expandir a cultura africana); Kuumba (criatividade para tornar a comunidade mais bonita e bem-sucedida); Imani (fé ao honrar ancestrais e tradições de líderes africanos).
A escritora norte-americana Donna Washington, autora de The Story of Kwanzaa (A História do Kwanzaa, em tradução livre), explica que os sete princípios “representam coisas concretas que podemos fazer para honrar nossas comunidades, fortalecer nosso conhecimento, apoiar negócios de minorias e compartilhar nossa história”.
“Durante o Kwanzaa, fazemos compras em lojas locais, nos voluntariamos e realizamos doações.”
Se no Natal a festividade é personificada na figura do Papai Noel, no Kwanzaa toda a simbologia é representada em um candelabro, chamado de Kinara. Nele, sete velas – três vermelhas, três verdes e uma preta, no meio – representam cada um dos princípios.
Além disso, bandeiras pan-africanistas, livros que falem sobre a cultura negra e alimentos são dispostos na mesa. O milho, por exemplo, representa as crianças. Nos Estados Unidos, as festas costumam ter batata doce, peixes temperados e ensopados de frango com creme de amendoim, entre outras iguarias.
O Natal dos negros?
Estudiosos da obra de Maulana Karenga, que atualmente leciona na Universidade da Califórnia, afirmam que o objetivo da festividade não é rivalizar com o Natal, ainda que isso aconteça. A inspiração para a data partiu de festas realizadas por diversos povos na África, como os Zulu e os Ashanti.
“Karenga não pensou necessariamente em fazer uma contraposição ao Natal, mas isso aconteceu, também porque ele quis que a comunidade afro-americana pensasse as festividades de fim de ano a partir do valor civilizatório africano”, explica Thembi Sekou, responsável por realizar a primeira celebração do Kwanzaa no Brasil, na cidade de Salvador, em 2007.
“Isso tem a ver com a ideia da colheita. Planta-se o ano inteiro e depois você colhe. É uma espécie de balanço sobre aquilo que aconteceu. A festa termina no primeiro dia do ano, com a esperança de um ano melhor que se inicia”, afirma Carlos Machado.
Ainda assim, ele acredita que o Kwanzaa seja uma forma de resistência do povo negro. “É uma estratégia de luta anti-hegemônica. O Natal está aí, e o Kwanzaa está chegando devagarinho. Isso sempre acontece com a resistência negra. Ela nunca está na pauta, mas sempre existiu, comendo pelas beiradas, como o quilombo, a capoeira ou o candomblé”, ressalta.
Para os cristãos, o Natal simboliza o nascimento de Jesus Cristo. O 25 de dezembro, no entanto, só foi efetivado pelo papa Júlio 1º, no século 4.
Ao longo dos séculos, a festa acabou sedimentada e virou tradição em todo o mundo, apresentando, inclusive, diferentes versões para a sua criação.
Segundo o professor Keith Mayes, o Kwanzaa não serve para substituir o Natal, até porque não tem caráter religioso. “Mas há uma crítica. Não aos fundamentos religiosos, mas à ênfase no excesso de consumo e na compra de presentes.”
Uma celebração mundial
Não existem dados que quantifiquem o número de pessoas que celebram o Kwanzaa. Além dos EUA, a festa está espalhada em países da América Central e também na Colômbia. No Brasil, Estados como São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Santa Catarina concentram as ações de grupos comunitários responsáveis por realizar as festas, mas as movimentações ainda são incipientes.
Segundo Thembi Sekou, é preciso resgatar os valores africanos que, segundo ele, foram destruídos pelo colonialismo.
“É fundamental resgatar aquilo que foi perdido, para renascermos em um outro modelo. Não é só uma celebração, mas também uma possibilidade de inserir no cotidiano das pessoas pretas, em suas famílias, comunidades, os valores que vão acabar com os preceitos ocidentais que nos foram impostos.”
“O Kwanzaa tem a capacidade de atrair uma população diversificada de negros na diáspora africana. Embora tenha sido criado a partir da experiência afro-americana, a festa celebra a negritude e os negros onde quer que você os encontre”, diz Keith Mayes.
As polêmicas do líder
Um ano antes do surgimento do Kwanzaa, Maulana Karenga, influenciado pelo que havia acontecido em Watts, decidiu criar a US Organization, grupo nacionalista negro que rivalizava com os Panteras Negras na Califórnia. Entre seus militantes estava Hakim Jamal, primo do ativista Malcolm X, assassinado em fevereiro de 1965.
Neste período, Karenga ficou conhecido não só pelo diálogo intenso com grupos da comunidade negra, mas também pelo relacionamento com autoridades brancas, como o então governador da Califórnia e futuro presidente dos EUA, Ronald Reagan, e o ex-prefeito de Los Angeles, Sam Yorty.
O nome de Karenga passou a estar envolvido em polêmicas em janeiro de 1969, quando membros da US foram responsáveis pelo assassinato de dois membros dos Panteras Negras, durante um encontro no campus da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Entre maio e agosto, outros dois Panteras Negras foram mortos por membros da US em San Diego.
Suspeitas de que Karenga teria orquestrado os primeiros assassinatos e de que era informante do FBI (a polícia federal americana) não foram comprovadas. Ele sempre negou ter ajudado as autoridades e se diz vítima das conspirações do governo americano.
Em 1971, o criador do Kwanzaa foi preso, acusado de estuprar e torturar duas mulheres que faziam parte da US. Condenado a 10 anos de prisão, ficou detido por três.
Assim como nas mortes de 1969, Marenga nunca assumiu os crimes e sempre afirmou ser perseguido politicamente. Após a prisão, o ativista concluiu dois doutorados e publicou 12 livros sobre pan-africanismo e identidade negra.