Os movimentos sociais e o novo ciclo de governança que surge

AUTOR: Ion de Andrade

 

Nos idos da ditadura os movimentos sociais tiveram papel crucial na materialização de uma ideia força, o Estado democrático de direito, que estava além de suas bandeiras específicas múltiplas. A democratização do Estado era como que o mantra comum que tornava inteligível as lutas específicas como parte de um mesmo projeto.

Nos contemporâneos doze anos de governos populares, Lula/Dilma, os movimentos sociais sofreram processo de relativo “esvaziamento” dada a necessidade de quadros para a gestão da máquina estatal que buscou nos quadros de sindicatos, associações, ONGs, etc os novos responsáveis pela gestão pública.

Este movimento natural e benéfico, por trazer o compromisso histórico destes quadros para a área governamental, se dobrou entretanto de um enfraquecimento da autonomia dos movimentos sociais que foram magnetizados pela catarse da possibilidade de avanços sociais por meio da governança do Estado. De fato muitos avanços ocorreram e vêm ocorrendo, mas o passivo do enfraquecimento relativo dos movimentos sociais e de sua relativa eprda de autonomia, compreensíveis dado o processo vivido pela sociedade brasileira, emergem como ameaças ao alcance da própria experiência de governos populares no médio e longo prazo, por perda de substância.

Quero dizer com isto que o poder popular foi o filho dos movimentos sociais, que funcionaram e funcionam como células matrizes da experiência política deste ciclo de formação do poder popular que passa capilarmente pela mobilização e formação de uma cidadania a partir de experiências de lutas temáticas, locais e econômicas para as outras gerais, universais e políticas. Esta cadeia foi enfraquecida, deve ser recuperada e a recente inclinação da CNBB para um novo ciclo de Comunidades Eclesiais de Base, aas CEBs, vem em boa hora, por terem exatamente este papel pedagógico de levar a singularidade à universalidade.

Em outras palavras o poder governamental alimentou-se do chão fértil preparado pelos movimentos populares, mas consumiu-lhe os nutrientes e é hora de pensarmos em adubar de novo este chão como importante pré-condição ao desenvolvimento do ciclo que se ergue no horizonte, cuja única chance de ser longevo virá do atendimento às reinvindicações autênticas de movimentos sociais autônomos frente á governança do Estado. A autonomia dos movimentos sociais não significa que não saberão reconhecer as diferenças na política. Obviamente a autonomia é a salvaguarda estratégica que alimenta governos populares aos quais, entretanto, os movimentos não podem estar rendidos. De fato para além da vaidade que é gerada no exercício da política partidária, os movimentos sociais desempenham papel germinal, mais alto e mais estratégico. Ainda que repouse sobre os partidos da esquerda o papel de conceber as políticas mais gerais que dão forma e exequibilidade aos anseios dos movimentos sociais, é bom que se diga que eles (os partidos) é que devem estar a serviços desses últimos (0s movimentos) e não podem em nenhuma circunstância arvorar-se á condição de serem seus chefes.

Tudo isto significa que os movimentos sociais precisam voltar à luta por uma nova bandeira geral que ocupe o papel que a bandeira representada pelo Estado democrático de direito ocupou durante a ditadura, ou seja reatar nós com um projeto de sociedade que seja o continuador dessa primeira conquista e lhe d~e alcance e conteúdo.

Quero crer que este projeto de sociedade, que aprofundei em artigo anterior publicado no ggn (Hegemonia, enfrentamento da miséria…) é hoje o do Estado de bem estar social, aquele onde as políticas sociais não somente terão galgado irreversibilidade absoluta, mas terão sido expandidas para novas áreas da cultura, dos esportes, da beleza urbana, da paz social.

Os movimentos sociais, para além das suas bandeiras específicas, devem mostrar ao mundo da política o que querem como bandeira estratégica comum e, feito isto, optarem por quem possa vir a ter melhores condições de implementar o que desejam. Como na época da ditadura, as bandeiras específicas e as gerais devem fazer um todo único que se retroaimenta e é innegociável. A esquerda partidária por seu turno deve estar atenta aos movimentos sociais para servi-los, não somente no atendimento das suas bandeiras específicas como também na discussão destas bandeiras gerais com quem compartilham papel de elaboração e a responsabilidade executiva.

Se os movimentos sociais no Brasil novamente se mobilizam desta vez pela consolidação e ampliação do Estado de bem estar social (que nem bem surgiu e já se vê agredido e ameaçado pela direita), teremos retomado, numa etapa mais alta, o fecundo dipolo que propiciou o primeiro governo Lula: um movimento social que sabe o que quer e um governo que bebe da sua fonte para viabilizar a árdua tarefa de construir a sociedade e terminar de curar o Brasil de tantas mazelas.

Sem os movimentos sociais a alta política se converte na trágica peça teatral menor da troca interesseira de favores entre camarilhas cada vez mais autocentradas e vis.

Fonte: GGN

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