Tem um pensamento que eu gosto muito. Mais do que gostar, eu acredito neste pensamento, porque, para mim, ele significa a verdade. “Raça não existe; o que existe é a espécie humana”. Quando o homem, ou melhor, a humanidade se organizou em sociedades. Quando ela passou a dominar a agricultura e, consequentemente, construir cidades para alojar milhares ou milhões de pessoas, a luta pelo controle político e pela hegemonia econômica recrudesceu. Desta luta deriva todo tipo de preconceito, inclusive o pior deles: o racismo.
Do DAVIS SENA FILHO, do Brasil 247
O preconceito do racismo é a forma mais infame e cruel de intolerância moral que o ser humano pôde expressar, porque se trata da negação da vida, da negação de Deus. O racista nega a vida e reafirma a indiferença, a desigualdade social e a violência. A pobreza material de grande parte dos povos da África negra e do povo brasileiro é intrínseca ao racismo. Eu quero afirmar, sem dúvida alguma, que a miséria material do nosso povo tem como raiz o racismo. Este sentimento, além de ser comportamental e cultural, o é também de fundo econômico, o que o torna intolerável para as pessoas civilizadas e de filosofia humanista e democrática.
Quando os ancestrais do povo brasileiro foram escravizados em um tempo de quase cinco séculos pelas potências colonialistas, o trabalho humano escravo foi visto como solução para que os colonizadores europeus pudessem ocupar os territórios por eles conquistados, além de desenvolver suas economias e, por conseguinte, disputar o mercado, em seus diferentes setores, pois a corrida pela hegemonia econômica e militar se encontrava em um processo de disputa entre a Inglaterra, a França, a Espanha, a Holanda e Portugal, dentre outros países, que buscavam riquezas, com o objetivo de colonizar terras e dominar os oceanos.
Com a explosão demográfica no continente europeu e o fim da Idade Média, considerada a era mais sombria das sociedades ocidentais, iniciou-se o ciclo das grandes navegações. Historiadores afirmam que foi a opção e a realidade encontradas pelos governos das potências europeias, para que a Europa não sucumbisse economicamente e seus povos não ficassem sem espaço para desenvolver suas atividades econômicas, principalmente a agricultura, a estratificação, e, posteriormente, a mineração, razão pela qual foi efetivado o sistema de escravidão, com a cumplicidade entre os europeus e suas diversas nacionalidades, com apoio, inclusive, das igrejas Católica e Protestante, bem como de agentes africanos que participavam e lucravam com o tráfico negreiro.
A escravidão de africanos começou no Brasil ainda em meados do século XVI. Duarte Coelho, donatário da Capitania Hereditária de Pernambuco, solicitou, em 1539, ao rei de Portugal, João III, o Piedoso, a isenção de impostos de “peças” africanas. As “peças”, na verdade, eram os escravos. Grandes extensões de terras e agricultura baseada na monocultura de cana-de-açúcar, que propiciou ao Brasil colonial o Ciclo do Açúcar, foram as primeiras razões dos colonizadores para que o comércio de homens, mulheres e crianças negros se perpetuasse até o ano de 1888, quando oficialmente foi abolida a escravidão no Brasil.
O tráfico de escravos foi um comércio tão lucrativo que somente acabou em âmbito mundial em 1865. A partir deste ano, o Brasil se tornou o único no mundo ocidental a efetivar a escravidão institucionalizada. Essa realidade prejudicava a chegada de imigrantes que preferiam outros países das Américas. Enquanto o mundo se transformava por meio da revolução industrial, as elites brasileiras, principalmente os usineiros do nordeste e do sudeste, e, mais adiante, os cafeicultores paulistas, insistiam com o sistema de escravidão, o que prejudicou, sobremaneira, o Brasil nos fóruns internacionais, bem como a sua economia, que, baseada na mão de obra escrava, não conseguia competir, satisfatoriamente, com os países, inclusive muitos da América do Sul, que pagavam salários aos trabalhadores, principalmente aos imigrantes europeus que tinham conhecimento técnico para exercer suas funções nas fábricas e no campo.
O Brasil foi o último País a dar fim ao comércio de escravos, além de Cuba, que, apesar de ter escravidão em seu território, a ilha caribenha era usada mesmo como entreposto de escravos, que eram distribuídos pelo Caribe, América do Norte e América Central. Países escravagistas como a Inglaterra, a França, a Espanha e a Holanda tinham grandes interesses econômicos nessas regiões. A presença da Espanha na América do Sul também era muito forte, bem como Portugal, pequeno país ibérico, mas que se tornou potência marítima, que, através do tempo, transformou o Brasil colonizado por ele em um País continental.
A escravidão dos negros africanos era essencialmente mercantilista. Sempre houve escravidão no mundo. A humanidade sempre pecou no que concerne a explorar à própria humanidade. Os países muito antigos, as sociedades antigas, as do tempo de Jesus Cristo e as de épocas anteriores as do Filho de Deus escravizavam, mas, geralmente, os derrotados eram considerados troféus, os quinhões, os prêmios dos vencedores de batalhas. Eram militares e civis que perderam guerras e pagaram com o preço alto e desumano da escravidão.
Por seu turno, a escravidão dos negros não tinha razões outras que não apenas a comercialização de seres humanos, por cerca de 400 anos, no mundo ocidental, que já tinha passado pelo Renascimento e se preparava para entrar no mundo moderno, que se iniciou, primeiramente, com as grandes navegações. O sentimento, realmente é de vergonha. Não a minha vergonha, não a sua vergonha, não a vergonha dos milhões de negros brasileiros, mas daqueles que enriqueceram e conquistaram terras com a morte e a escravidão de milhões de homens e mulheres, que morriam nos navios negreiros, em cerca de 40%, vítimas de maus tratos, de todo tipo de doença, além de serem jogados aos mares, como punição ou por causa da fiscalização do exército e da marinha ingleses, cujo governo, no ano de 1806 para 1807, decidiu dar fim ao tráfico de escravos. A Inglaterra era a potência mundial daquela época.
Portugal, que edificou uma nação importante em termos mundiais na América do Sul, foi o maior mercador de escravos de todos os tempos, no que tange aos interesses especificamente comerciais e econômicos. O Brasil, além de ser o último País a libertar os escravos, foi também o destino de três milhões e 600 mil escravos, dos dez milhões dos cativos que chegaram vivos e foram trazidos para as Américas. Como se percebe, o Brasil, nos séculos da escravatura, foi o responsável por 36% de todo comércio escravagista em âmbito mundial. Esses números o são realmente assombrosos.
A escravidão dos negros foi e ainda o é a maior diáspora da história da humanidade. Se a comunidade negra, a brasileira e a internacional, fosse rica e controlasse as mídias, a imprensa comercial e privada, os bancos e as terras, evidentemente, que essa dolorosa história nunca deixaria de ser comentada, nunca seria esquecida, bem como o genocídio dos índios de todas as Américas nunca ficaria relegado a um segundo plano. Como se observa, a divulgação política da escravidão e dos massacres e genocídios dos negros e dos índios o são também questões políticas, econômicas e financeiras, além de morais e de justiça, a que nunca foi feita, e considero que tal reparação nunca acontecerá.
Os escravocratas nunca ganharam tanto dinheiro. A comercialização de pessoas era mais lucrativa do que a estratificação, a agricultura, a pecuária, a mineração e a pesca. A indústria praticamente não existia, porque começou a se desenvolver na segunda metade do século 19, quando a Inglaterra começou — por questões econômicas e não morais, que fique registrado, a perseguir, a apreender e a afundar navios, bem como a boicotar as economias e a agredir militarmente os países que insistiam em traficar seres humanos com finalidade comercial. Era o início da industrialização, quando surgiu, de forma incipiente, a classe operária, melhor qualificada, sem direitos trabalhistas, contudo, assalariada. Os salários baixíssimos, os trabalhadores explorados até a exaustão, porém, reitero, assalariados.
Os negros africanos, cujos filhos e descendentes são brasileiros, desembarcavam nos portos da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro. Depois da chegada, eles eram espalhados e distribuídos por todo o País. Trabalhavam na mineração, na lavoura, na pecuária, nas instituições governamentais, nas ruas e nas casas residenciais. Eles estavam presentes no dia a dia da vida brasileira e ajudaram, indubitavelmente, a construir o Brasil de hoje, País que teve, em 2014, um PIB de R$ 5,52 trilhões, segundo o IBGE, e que atualmente tem influência planetária, além de possuidor de um mercado interno poderoso, apesar dos ciclos de aceleração e desaceleração da economia e do crescimento. Sem sombra de dúvida, a plural, multicultural e multirracial sociedade brasileira deve muito aos homens e às mulheres negros, que trabalharam, arduamente, sendo que milhares de pessoas pagaram com a própria morte, como vítimas que foram da terrível e inominável escravidão.
Os escravos negros, que buscavam se livrar do cativeiro e serem reconhecidos como cidadãos, combateram na Guerra de Canudos e na Guerra do Paraguai para não receber retorno algum, a não ser o abandono por parte do estado e da sociedade brasileira. Os ex-escravos foram morar nos morros da Favela e da Providência, as primeiras favelas deste País. As desigualdades sociais são gritantes. A miséria e a pobreza, históricas, são a razão da prostituição, do tráfico de drogas e de armas, bem como da violência em todas suas generalidades. As desigualdades e a falta de oportunidades são as essências da degeneração de milhões de famílias, e, consequentemente, da sociedade de consumo e de princípios e valores descartáveis.
Os negros, observemos, pertencem às camadas mais pobres da sociedade brasileira, as que estão em risco constante de serem vítimas de todo tipo de miséria humana e de ignorância. O ignaro é mais perigoso que o marginal, porque ele é parte de milhares, quiçá milhões, e por isso se anulam as condições para que as nossas cidades e o País se desenvolvam, de maneira equânime, justa e democrática. Não há paz se não existir justiça social. Os governos, em todas as esferas, têm de deixar de ser patrimonialistas. O Estado tem de ser devolvido ao povo e não continuar a servir à pequena parcela da sociedade, que há séculos trata os interesses do Estado nacional e da maioria da população como se fossem interesses privados — particulares. É uma luta árdua, perene e constante a ser travada pelo povo brasileiro.
Os governos trabalhistas de Lula e agora o de Dilma Rousseff têm lutado e conseguido melhorar o quadro social e econômico das classes sociais carentes e populares. É uma revolução silenciosa e duramente combatida pela casa grande, mas da grandeza da que foi efetivada pelo presidente Getúlio Vargas, em 1930, e, posteriormente, em 1950, quando o Brasil deixou de ser rural e passou a ser urbano, por meio da industrialização, da organização do serviço público de forma centralizada, em âmbito federal, e da criação de meios de fiscalização das receitas públicas, bem como dos serviços de arrecadação de tributos do estado nacional, além da criação de estatais como a CSN, a Vale do Rio Doce (os neoliberais só querem chamá-la de Vale), a Telebras e a Petrobras, dentre outras dezenas de estatais, que permitiram a industrialização do Brasil, o seu fortalecimento como uma economia diversificada e uma das dez mais poderosas do mundo.
Os programas dos governos trabalhistas de Lula incluíram 42 milhões de brasileiros na classe média (quase a população da Argentina) e tiraram 36 milhões da pobreza extrema, da miséria absoluta, bem como a fome praticamente foi extinta no Brasil. Realidades estas reconhecidas por organizações internacionais como a ONU (FAO), que considera o Brasil um modelo de combate à pobreza e à miséria. A maior parte dessa gente brasileira que vive e vivia em situação de risco e desprovida de segurança alimentar é formada por brasileiros de etnia negra.
Trata-se de uma revolução silenciosa, certamente, e que não tem o apoio e a publicidade da imprensa de mercado dos magnatas bilionários, que sabotam e boicotam os avanços sociais e econômicos conquistados pelo povo brasileiro. Só para ficar nisto, porque os governo trabalhistas fizeram muito mais, como, por exemplo, fortalecer o nosso mercado interno ao ponto de o Brasil praticamente não sentir em demasia a crise econômica e financeira que aconteceu no mundo em 2008, apesar de a imprensa de negócios privados não reconhecer tal feito e por isso mentir e manipular, porque a verdade é que as mídias burguesas são as porta-vozes dos trustes internacionais e nacionais, bem como pontas-de-lanças dos interesses dos inquilinos da casa grande, que habitam o pico da pirâmide social, além de se transformarem em partidos de direita — o Partido da Imprensa.
O Estado Democrático de Direito, conforme reza a Constituição de 1988, é o agente que determina as políticas públicas, no que é relativo à saúde, à educação, à moradia, à segurança e à luta para favorecer a distribuição de terras, de renda e fomentar a geração de empregos. Todas essas coisas essenciais para a vida o são desejos dos brasileiros, principalmente dos negros e dos índios, que ainda não foram resgatados e justificados historicamente e socialmente.
A sociedade brasileira, com todos seus contrastes, antagonismos e incoerências tem de continuar a lutar para se transformar, de fato, em uma democracia plural. Temos de edificar uma sociedade justa e democrática, que pertença aos brancos, aos amarelos, aos vermelhos e aos negros, enfim, a todas as raças e culturas. Todavia, sabemos que a grande parcela negra da população tem de ser ouvida por todos os segmentos da sociedade, bem como ser alvo de políticas públicas positivas que garantam a inclusão social e econômica dos negros e dos índios, no mercado de trabalho e nas escolas básicas e universitárias.
Até hoje, em pleno século XXI, parte significativa do povo brasileiro não tem acesso a benefícios sociais e ao direito de ter uma vida de melhor qualidade. Os negros continuam a ter os piores empregos, a morar nas periferias, nas favelas, nos morros e nas comunidades pobres. Seus empregos são os mais insalubres, os mais perigosos e mal pagos. Continuam a ser vítimas do pior sentimento dentre os piores sentimentos que é o racismo, porque, como cidadão negro, ele é medido por sua cor, por seu cabelo, por suas características físicas e não pela sua conduta e propósitos, pela sua competência, pelo seu caráter, digo melhor, bom caráter, pelo seu coração. Os indivíduos são pertencentes à espécie humana. Raça é terminologia superada, que somente os desinformados, os ignorantes, os preconceituosos e os racistas insistem em assim se comportar. Comportar-se mal, diga-se de passagem.
É um direito inalienável do homem e da mulher, independentemente de sua origem e cor, ter suas cidadanias ratificadas, reconhecidas e reiteradas pelo estado e pela sociedade a qual pertencem. Ser cidadão não se reduz a pagar impostos. Ser cidadão é também saber de seus direitos e, dentre um elenco de direitos, um deles é não ser humilhado ou esquecido ou relegado por sua condição social e por sua cor de pele e etnia. Os negros estão para sempre, eternamente, na história do Brasil e do seu povo. Ele é parte dele. O negro é o povo, e o Brasil é de todos e para todos os brasileiros. É isso aí.