Os retornados, por Sueli Carneiro

Primeiro chegou a cruz. E em seu nome os teólogos do século XVI justificaram a escravidão sob o argumento de que o africano era um homem que não tinha religião, mas superstições; não tinha língua, mas dialeto; não tinha arte, mas sim folclore .O filósofo V.Y Mundibe relata: “Segundo a doutrina, eram os povos avançados que dispunham de meios técnicos e intelectuais úteis de intervir nessas regiões dormentes da África e de explorar os bens destinados a toda a humanidade após a criação do mundo.

Por Sueli Carneiro

Por sua presença e uma política adequada, o colonizador acordaria os povos letárgicos e os conduziria à civilização e à verdadeira religião”.

Depois veio a ciência. A construção da inferioridade/superioridade dos povos, com seu ápice no racialismo do século 19, constituiu num longo acúmulo teórico de diferentes disciplinas, em especial as ciências naturais no que concernem à classificação e a diferenciação dos homens, em regra com base nos conhecimentos da botânica e da biologia, transportados para a espécie humana.

O que estava em questão era a necessidade de classificar, compreender, identificar, catalogar a diversidade humana, a alteridade, ou seja, o outro. À inquietude em relação à diversidade da natureza corresponderá a inquietude em relação à diversidade humana.

Entre “achados” dessas pesquisas, de acordo com Geraldo Mello Mourão, “Paul Broca, na França, e Galton, na Inglaterra, estabeleceram a ciência da medição dos crânios humanos, chegando à conclusão de que os crânios mais inadequados para conter um cérebro saudável seriam, nesta ordem, os negros, amarelos…”

Os que aqui chegaram presos a grilhões após uma viagem sinistra na qual o pior dos males foi sobreviver, o que significou a perda da humanidade e a redução à condição de instrumento de trabalho de outros seres, autodefinidos como superiores, agora retornam . Eles vêm de todos os estados do Brasil, compondo uma representação simbólica de todas as etnias africanas, aqui desembarcadas. Após quase quinhentos anos retornam, como sobreviventes das trevas em que foram mergulhados pelo pesadelo colonial. Retornam como credores de uma dívida histórica que a história contada pelo agressor procurou fazer caducar . Retornam, de escravos a portadores de uma missão civilizatória, pelo que carregam, inscritos em suas almas e corpos, da barbárie que simulacro de civilização foi capaz de praticar . Os condenados da terra retornam à terra – mãe. Durban, porta de entrada de um reencontro coletivo esperado há cinco séculos. Na África do Sul, símbolo da luta e opressão de todos os africanos e afrodescendentes.

Emoção, lágrimas, nostalgia do não vivido, transe de um ethos africano persistentemente incrustado nesses seres colonizados. São como crianças que há muito tempo foram arrancadas do seio de suas mães, mas que permaneceram sonhando com sua imagem, mesmo cada vez mais difusa; sentindo o seu cheiro e ouvindo ecoar dentro de si algo clamando por sua presença.

Nesse imaginário de desterrados, a busca incessante do elo perdido entre um mítico ser africano guardando, em cada um, ao longo desses séculos, e um não -ser instituído pela escravidão, pelo racismo e pela discriminação. Dessa agonia emergem esses combatentes, homens e mulheres credores dessa dívida histórica, que exigem o reconhecimento de sua humanidade lesada e as reparações que lhes são devidas e a seus ancestrais . Enfim Durban, desaguadouro das demandas e aspirações das vítimas do racismo de ontem e de hoje.

É a abertura do Fórum de ONGs que precede a III Conferência Mundial contra o Racismo … Duas mulheres se destacam: a alta comissária das Nações Unidas e uma integrante do Comitê Organizador do Fórum de ONGs. Uma branca, outra negra, têm em comum, além de serem mulheres, o pertencimento àquela parte da humanidade que abjura todas as formas de violação dos direitos humanos .Em sua saudação aos delegados das ONGs, a alta comissária afirma: “Algo começa em Durban . Tem sido um longo caminho para um novo começo …para corrigir os erros dos séculos anteriores”.

A africana integrante do Comitê Organizador por sua vez declara: “Esta Conferência nos traz uma enorme esperança e uma forte crença na capacidade da espécie humana para reconstruir e reconciliar as omissões do passado, já que a única coisa que o racismo e a intolerância geraram através da história foram destruição, genocídio e sofrimento”.
Por fim fala o presidente da África do Sul . O jornal Sem Colchetes, a voz da América Latina e do Caribe em Durban, assim descreveu a emoção que cercou o contexto de sua fala: “Thabo Mbeki, presidente da África do Sul, dirige a palavra ao mundo. Em torno de si permanecem sentados os homens e mulheres, ornamentados com seus trajes tradicionais, que protagonizaram minutos antes um espetáculo no qual fluíram a cultura e a história de seu povo . É a voz de um continente humilhado ofendido, mas pleno de dignidade e esperança, e também a voz dos discriminados do mundo que fala por sua boca neste histórico 27 de agosto de 2001 em que se inicia o Fórum de ONGs que precede a III Conferência Mundial contra o Racismo”.

Os retornados do Brasil apresentam as suas credencias de afro-descendentes ao líder sul-africano, tendo por porta – voz seu representante mais legítimo, Abdias do Nascimento, força e honra de nossa gente.

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