Oscar em tempos de racismo – Por: Carlos Eduardo Lourenço Jorge

Consagrado pela Academia de Hollywood como melhor filme, 12 anos de escravidão é o retrato real e explícito de uma infâmia que ainda hoje persiste sob formas veladas

Por: Carlos Eduardo Lourenço Jorge

O crítico e diretor francês François Truffaut dizia que, para começar a julgar um cineasta, é preciso esperar por seu terceiro filme. O primeiro e o segundo são apenas exercícios de autodescoberta e ajustes, mas com o terceiro, ao contrário, já se supõem certos interesses, focos e inquietações, uma coerência temática e artística, uma voz, um discurso. É o que ocorre com 12 anos de escravidão, muito bem-vindo lançamento ao circuito local, apesar do atraso de quase um mês em relação ao resto do país.

O que faríamos se, de repente, alguém nos fizesse prisioneiros? Esta é a referência a um fato consumado, que tiraria nossas liberdades mais básicas. Teríamos o valor, a força, a integridade, talvez a imprudência de reivindicá-las de volta? Defenderíamos amigos ou vizinhos, se fossem humilhados e até torturados? Esta é exatamente a situação que o diretor McQueen propõe ao espectador neste seu filme mais recente – os dois primeiros, Hunger e Shame, respectivamente de 2006 e 2012, também falavam sobre supressão da liberdade: um ativista irlandês preso e em greve de fome, e um homem solitário preso à adição ao sexo.

Norte dos EUA, meados do século 19. Somolon Northup é um negro livre, educado, classe média, casado, dois filhos, bem relacionado, gozando de boa posição social. Com o pretexto de lhe oferecer trabalho como violinista (amador), dois homens o enganam e o fazem prisioneiro. Ele acaba vendido como escravo. Nos próximos 12 anos, ele passará por várias plantações do sul do país, trabalhando para fazendeiros. Embora passando por terríveis experiências, ele não perderá a esperança de recobrar a liberdade e rever sua família. Durante este processo de sobrevivência ele descobre que não deve mostrar-se como alguém que teve educação. E deve lutar também diante do dilema moral que aponta reações diferentes quanto às enormes injustiças das quais é testemunha.

Esta é uma história verídica, conforme narrada pelo próprio personagem central na autobiografia que escreveu dois anos após reconquistar a liberdade, e que se transformou no roteiro adaptado de John Ridley, também premiado com o Oscar da categoria. 12 Anos de Escravidão não apresenta um escravo qualquer, mas alguém que antes era um homem livre: este ponto de vista preciso, exato, faz toda a diferença. O filme, claro, é uma obra sobre tal ignomínia. Mas ele se distancia voluntariamente de trabalhos sobre a escravidão nos EUA, como a saga televisiva Raízes, que seguia as desventuras do personagem Kunta Kintê, ou sobre o Holocausto, caso de A lista de Schindler, dirigido por Spielberg em 1993: dois libelos sobre grandes genocídios, mas baseados tanto na busca da cena impactante como em uma estratégia de emotividade vinculada ao suspense e ao melodrama.

O diretor McQueen não evita a violência – flagelações e violações incluídas –, mas a inclui no catálogo de irracionalidades que podem ocorrer com a perda da liberdade. E contempla o calvário de Solomon com grande distanciamento emocional, evitando comprometer sua história com o melodrama fácil. O que interessa é o ponto de vista de Solomon, a visão de alguém surpreendido e desamparado que opta pela sobrevivência. Não é um filme sobre a escravidão, mas é um filme que nos mergulha na escravidão. 12 anos de escravidão é também interessante por ilações que faz, como por exemplo a questão sado-masoquista no trânsito casa grande-senzala – e aí o domínio absoluto é de Michael Fassbender, ator-fetiche de diretor.

O filme com certeza não está entusiasmando muito nem os aficionados do drama histórico e nem os seguidores do McQueen mais formalista, já que temos uma estética clássica, sem invenções. Fria, nada experimental, esta última obra do diretor tem este grande mérito – e não é demais reiterar – de nos colocar na situação. E não só na de Solomon, mas do inepto Sr. Ford, um daqueles incapazes que permitem que ocorram as maiores barbaridades. Não há duvida: em tempos de recrudescimento de manifestações racistas em campos de futebol e outras arenas mais ou menos próximas onde o preconceito habita, o filme é munição suficiente para uma reflexão sobre o que se passa ao nosso redor. Talvez, embora sem parecer, 12 anos de escravidão não deixe de ser uma fábula moral.

Fonte: Jornal de Londrina

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