Outro mundo é possível, por Sueli Carneiro

O Fórum Social Mundial (FSM) surgiu como contraponto aos efeitos perversos do processo de globalização da economia, conforme reza a cartilha de exclusão de Davos.

Por Sueli Carneiro

Rapidamente progrediu em ambição, tornando-se o cenário em que se engendra uma nova narrativa para o mundo, em que comparecem os sonhos e necessidades da maioria excluída do mundo e de parcelas da minoria incluída, que deseja e acredita que outro mundo é possível e que a globalização pode adquirir uma face humana e solidária.

A Carta de Princípios do FSM afirma que ele não tem caráter deliberativo. É um espaço de debates sobre os atuais mecanismos de dominação do capital, dos meios de resistência e superação dessa dominação, e sobre as alternativas para resolver os problemas de exclusão e desigualdade social que o processo de globalização engendra. É também ‘‘um espaço plural e diversificado, não confessional, não governamental e não partidário”. Por isso causa espanto a recente declaração do presidente Lula em relação ao FSM. Disse o presidente que ele ‘‘tende a se transformar numa ‘feira de produtos ideológicos”, onde cada um vem e compra o que quer, vende o que quer”. Daí, para o presidente, a necessidade de que o FSM defina um tema prioritário, como bandeira da sociedade civil.

O espanto decorre do fato de o presidente Lula resolver ‘‘colocar ordem nessa bagunça ideológica”, sugerindo ou definindo, a partir do seu espaço e ótica governamental, o tema considerado por ele convergente e prioritário a ser vendido e comprado pela sociedade civil mundial: a fome. Mantêm-se na fala do presidente a confusão, presente também em relação a outras questões governamentais, entre esfera pública e estatal, em que a sociedade civil, em prejuízo de sua autonomia, é convocada a se tornar co-responsável por prioridades políticas governamentais, que ela não definiu por muito legítimas e urgentes que sejam, como é o caso do combate à fome.
A multiplicidade de necessidades e expectativas que hoje entrecorta o FSM faz com que, com razão, Emir Sader, um dos membros do Comitê Internacional do FSM, afirme que ‘‘pela multiplicidade de temas que produz o mundo atual, não há um que cruze”. E acrescenta os eixos fundamentais que orientam as diferentes versões do FSM: ‘‘A nossa luta é contra a exploração, a alienação, a dominação e a discriminação”. Diante dos princípios e dos eixos fundamentais que norteiam o FSM, choca a desenvoltura com que o presidente brasileiro se sente confortável para pautar e orientar monotematicamente a sociedade civil mundial.

As complexidades temáticas assumidas pelo FSM não são redutíveis, não conformam prioridades ou hierarquias, mas tornam complexas as análises e proposições; é o espaço em que se desenrola essa difícil construção. Tentar acelerar o tempo de maturação dessa construção exige, antes de esgotar todas as escutas, querer antecipar os seus devires e impor-lhe uma agenda, significa abortar as suas potencialidades transformadoras, sobretudo quando pautadas por interesses governamentais.

É verdade, conforme afirma Sérgio Haddad, que ‘‘há quase um clamor por buscar indicativos, no contexto do FSM, sobre os temas mais convergentes e suas estratégias de ação”. Mas ele adverte que, ‘‘de um lado, o grande problema talvez seja como realizar tal proposta dentro do espírito da carta de princípios e do método FSM, buscando evitar a tendência freqüente de que alguns ‘iluminados’ digam para as maiorias o que se deve fazer como estratégia de luta”.

A última edição do FSM na Índia é exemplar sobre o quanto de escuta e diversidade de vozes precisam ainda ser contempladas nessa busca de alternativas à globalização, que possam abraçar e abarcar-nos a todas e todos. Segundo Haddad, viveu-se lá um ‘‘caldeirão de diferenças” e percebeu-se ‘‘o quanto estamos isolados em nossa visão ocidental”, dada a diferença de enfoques e prioridades colocados pelos representantes dos diversos países asiáticos ali presentes.

Deseja-se que próxima edição do FSM pós-Porto Alegre/2005 ocorra em um país africano, nova oportunidade de escuta de um continente onde, embora se concentre de forma mais aguda a problemática da fome, haverá muito o que ouvir e propor sobre os eixos de lutas estruturais do FSM: a exploração, a alienação, a dominação e a discriminação, dos quais a fome, em grande medida, é conseqüência, exigindo remédios emergenciais, mas, sobretudo, estratégias de transformações estruturais para que ela e demais mazelas sociais que afligem africanos e outros povos possam ser erradicadas.

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