Paes e a desumanização da mulher negra

O Brasil é o país da cordialidade violenta, onde homens brancos se sentem autorizados a aviltar uma mulher negra e dizer que foi só uma brincadeira

Por  Djamila Ribeiro , da Carta Capital 

Na última sexta feira 26, circulou pela internet um vídeo com o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB-RJ), fazendo uma entrega de imóveis. Sem data e local não identificados, Paes faz piadas de cunho sexual, ofendendo uma mulher negra visivelmente incomodada com a situação. Ao ser chamada para receber as chaves do imóvel, o prefeito carioca e a mulher entram na casa.

Ao chegarem no quarto, Paes diz: “Vai trepar muito aqui nesse quartinho”. Não satisfeito, pergunta se a moça é casada e emenda: “Vai trazer muito namorado pra cá. Rita faz muito sexo aqui”. Como se a humilhação não fosse suficiente, Paes, do lado de fora, grita para os vizinhos da moça que acompanhavam a entrega. “Ela disse que vai fazer muito canguru perneta aqui. Tá liberado, hein. A senha primeiro”. Visivelmente envergonhada, a moça se afasta e diz que vai trancar a porta de casa.

Esse comportamento de Paes diz muito sobre o discurso autorizado e como o político se sente confortável em reduzir um ser humano ao seu corpo. Mulheres negras são sexualizadas e tratadas como objetos sexuais numa sociedade racista e machista como a brasileira. Desde o período colonial, as mulheres negras eram estupradas e violentadas sistematicamente deflagrando uma relação direta entre colonização e cultura do estupro.

Mulher negra não é humana, é a “quente”, a “lasciva”, “a que só serve pra sexo e não se apresenta à família”. O grupo de mulheres que mais são estupradas no Brasil porque essas construções sobre seus corpos servem para justificar a violência que sofrem. “Qual o problema em passar a mão? Elas gostam”.

Qual o problema em humilhá-la dizendo “Vai trepar muito aqui nesse quartinho ” e gritar para o público “ela disse que vai fazer muito canguru perneta”, quando a mulher se tranca com aquele olhar de só quem passa por isso sabe?

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‘Ela disse que vai fazer muito canguru perneta aqui’, diz Eduardo Paes, no vídeo, para as pessoas que estão na rua (Reprodução/ Carta Capita )

O Brasil é o país da cordialidade violenta, onde homens brancos se sentem autorizados a aviltar uma mulher negra e depois dizer que foi só uma brincadeira. Ou se esconder na pecha de “carioca é desbocado”. O País, último do mundo a abolir a escravidão, mas que se a população negra denuncia o racismo é chamada de violenta. É necessário definir violência aqui. O país onde todos adoram samba e carnaval, mas onde se mata mais negros no mundo. Que se louva a miscigenação, mas não se fala que ela surgiu como fruto de estupros. O brasileiro não é cordial. O brasileiro é racista.

A atitude de Paes não é algo isolado, é tão somente o modo pelo qual essa sociedade vem historicamente tratando as vidas negras: com desprezo e desumanidade. Mulheres negras são pessoas, sujeitos, e reduzir um ser humano a um objeto é retirar sua humanidade. Uma mulher branca de classe média seria tratada da mesma forma? Fora que o fato do prefeito se referir ao quarto da moça como “quartinho” também mostra o racismo institucionalizado.

Imóveis para pessoas de baixa renda comumente são bem pequenos. É como se dissessem “pra quem não tinha nada está bom”, sem mencionar que essas pessoas não têm nada justamente porque o Estado é omisso em relação a elas. Só deixam explícito que a população pobre merece migalhas e não dignidade.

Inadmissível o modo pelo qual essa mulher foi tratada. Um jornal de grande circulação definiu a atitude de Paes como “gafe”. Gafe seria se ele tivesse quebrado um vaso ou tropeçado no seu assessor depois de errar o nome de alguém. O que o prefeito fez tem nome: racismo. Paes cumpre à risca seu papel ridículo e violento de herdeiro da Casa Grande.

 

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