Para Raull Santiago, na pandemia “favelas foram governos, enquanto governos foram ausência”

FONTEDo RFI
Raull Santiago (Foto: Wendy Andrade)

O ativista Raull Santiago é um dos fundadores do Gabinete de Crise do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. A iniciativa, criada no começo da pandemia de Covid-19, reuniu vários movimentos sociais para ajudar na comunicação sobre o surto junto às comunidades mais vulneráveis. Mais de um ano depois do lançamento, ele considera que o projeto ocupou um papel abandonado pelo Estado, que falhou em sua missão humanitária e, muitas vezes, colocou obstáculos no trabalho da sociedade civil.

Quando a pandemia de Covid-19 atingiu o Brasil, no primeiro trimestre de 2020, Santiago foi marcado em um tuíte da também ativista Camila Moradia, do grupo Mulheres em Ação no Complexo do Alemão, no qual ela dizia: “Eu acho que chegou a hora de montarmos o nosso gabinete de crise”. Não precisou mais nada para ele se lançar na aventura.

Santiago vive para valorizar e defender a favela. Cofundador de movimentos como Papo Reto, Perifa Connection ou, mais recentemente, Favelas & ODS, ele já está acostumado a lançar projetos visando melhorar a vida dos moradores das periferias do Rio de Janeiro, principalmente do Complexo do Alemão, onde cresceu. “Toda pessoa que vem de favela, como eu, já nasce ativista”, resume o carioca.

Ele lembra que o apelo de Camila Moradia surgiu em um momento crítico, quando as preconizações sanitárias dadas pelas autoridades para se proteger contra o coronavírus, como lavar as mãos e manter distanciamento social, eram inviáveis nas favelas, onde às vezes até a água não é acessível a todos. Além disso, a população era confrontada a muitas informações desencontradas sobre o surto e as formas de contaminação.

“A gente teve que se organizar, não só para pensar estratégias para trazer para dentro da favela as informações importantes que estavam circulando sobre a realidade da pandemia, mas fazer o enfrentamento às fake news também relacionadas a essa situação”, se recorda. “Mas a fome chegou de forma muito rápida nos lares das pessoas mais pobres e o gabinete se viu fazendo ação humanitária”, relata.

Estratégia do “nós por nós”

Com o Gabinete de Crise, Santiago é consciente de estar substituindo um papel que, teoricamente, seria do Estado. “Com toda a humildade do mundo, eu digo que as favelas e as periferias a nível nacional, com essa auto-organização, foi o que de fato fez e segue fazendo esse vírus ser um pouco menos caótico”, admite. “O ‘nós por nós’ foi a regra central. As favelas é que foram governos, enquanto os governos foram ausência”, sentencia.

O ativista denuncia a ação pública que, segundo ele, não apenas deixou de ajudar, como também atrapalhou a ação da sociedade civil. “Em nível federal, a gente só teve problemas. Quem está na Presidência do Brasil, além de não nos representar em nada, é uma pessoa violenta, que desrespeita e não tem consideração com quem vem da realidade da qual eu venho”, afirma.

Já do lado do governo estadual, “além de não ajudar nas questões sanitárias e humanitárias, quando se fez presente foi, mais uma vez, repetindo a estratégia racista e histórica de controle militarizado e controle violento da vida do pobre”, desabafa.

Segundo ele, a ação da polícia foi tão ostensiva que em alguns momentos os grupos sociais tiveram que interromper o trabalho humanitário. “Foi tão brutal que nós, que estávamos entregando cestas básicas e ajudando as pessoas, tivemos que pausar essas ações porque o Estado estava interferindo de forma violenta, com ações policiais gravíssimas”, se recorda.

Relaxamento provocou diminuição das doações

Atualmente o gabinete funciona de maneira mais dispersa, como cada grupo atuando em sua área. O coletivo Voz das Comunidades distribui quentinhas, Mulheres em Ação no Complexo do Alemão doa cestas básicas, enquanto Papo Reto avança com sua campanha “Até vencermos a fome”.

Segundo Santiago, essa segmentação da ação coletiva se deve ao fato que, com o relaxamento das medidas sanitárias e a retomada de algumas atividades, as doações feitas ao gabinete diminuíram. Porém, ele lembra que mesmo se o projeto se transformou, “a fome ainda é crescente e de cada dia novas pessoas nos procurarem pedindo socorro”.

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