Parem a matança: regulamentem as drogas

Culpá-las por dependência é como culpar os alimentos pelo vício em comida

As histórias que contamos a nós mesmos sobre as drogas costumam ser muito simples: “as drogas são perigosas, assim como as pessoas que as usam”. Quando eu era um jovem soldado do Exército, eu acreditava que eu estava fazendo o trabalho de Deus ao dizer às pessoas para ficarem longe das drogas. Eu acreditava que a pobreza e a criminalidade que assolavam as comunidades pobres, como aquela de onde vim, eram um resultado direto das drogas.

Essa crença me inspirou a estudar neurociência e dependência química. Passei mais de duas décadas conduzindo pesquisas de laboratório em busca de evidências que comprovassem a narrativa que diz que “drogas são ruins”. Ganhei bolsas multimilionárias do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas (NIDA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos para realizar pesquisas, e o que descobri é que a história real sobre as drogas não é tão simples quanto as narrativas populares podem ter levado você a acreditar.

Para começar, uso de drogas não quer dizer vício em drogas. Para atender os critérios da definição de dependência mais comumente aceita –aquela presente no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5.ª edição (DSM-5)–, o uso de drogas precisa causar sofrimento à pessoa. Além disso, esse uso de drogas deve interferir em importantes funções da vida do indivíduo, tais como trabalho, cuidado de crianças e relacionamentos íntimos.

Na realidade, a esmagadora maioria dos usuários de drogas não se torna dependente. É isso mesmo: entre 70% e 90% das pessoas que usam mesmo as drogas mais infames, como crack ou heroína, não são dependentes. Então, se a maioria dos usuários de uma droga específica não se viciam, seria incorreto culpar a droga por causar dependência. Seria como culpar os alimentos pelo vício em comida.

As narrativas preconceituosas da sociedade sobre as drogas inspiraram a chamada “guerra às drogas”. Retóricas insensíveis e políticas e práticas draconianas se tornaram um lugar-comum, levando à desumanização de usuários e vendedores de drogas. Somente no estado do Rio, a polícia mata mais de mil pessoas por ano. As vítimas geralmente são pobres, jovens e negras –e com frequência inocentes. Enquanto isso, os problemas reais enfrentados pelas comunidades tratadas como alvos –por exemplo, pobreza, educação insuficiente, falta de empregos– são ignorados.

Então, o que precisa ser feito? Podemos começar reconhecendo que as drogas não são o problema. Houve um tempo em que varríamos os danos causados para debaixo do tapete sob a justificativa de livrar algumas comunidades das drogas. Isso permitiu que leis de combate às drogas racistas e seletivas encontrassem um solo fértil, o que até hoje causa danos incalculáveis e muito sofrimento.

Para acabar com a carnificina, precisamos urgentemente regulamentar a venda e o uso das drogas mais usadas, assim como já fazemos com drogas como álcool e tabaco. Isso geraria inúmeros empregos e permitiria a arrecadação anual de centenas de milhões de reais em impostos. Também seria um enorme avanço no sentido de eliminar os muitos danos causados pelas políticas proibicionistas atuais. Seria o começo de uma reconciliação entre as práticas inglórias do passado e os princípios de direitos humanos que concedem aos adultos o pleno domínio sobre seus próprios corpos. Deveríamos investir nas pessoas, não investigá-las pelas substâncias que elas ingerem.

Reconheço que minha perspectiva pode ser recebida com hostilidade por algumas pessoas. Aqueles que lucram com a guerra às drogas podem tentar manchar minha reputação, dizendo que sou um viciado simplesmente porque já revelei meu histórico de uso de drogas. Isso é uma tática desesperada. Nunca correspondi aos critérios que caracterizam a dependência química –ainda que esse fato seja irrelevante para avaliar a solidez dos argumentos desenvolvidos aqui. Não chamaríamos uma pessoa de alcoólatra apenas porque ela bebe álcool periodicamente. Outros detratores fizeram questionamentos tolos à minha credibilidade sobre a favela. Sueli Carneiro, minha irmã na luta, falou melhor: “entre a direita e a esquerda, sei que continuo preta”.

Continuo comprometido com meu povo e com a ciência. Se as ideias expressas aqui forem aceitas, podemos começar a tratar melhor uns aos outros e viver vidas mais plenas e cheias de significado. Não é isso que todos nós queremos?


Carl Hart

Professor de Psicologia e Psiquiatria na Universidade de Columbia (Nova York) e autor do livro “Drogas para Adultos” (Zahar, 2021)

+ sobre o tema

Diretor da OIT diz que Bolsa Família provou ser uma das forças de superação da crise econômica no Brasil

Fonte: Clica Brasília- O diretor executivo do Setor de Proteção...

Ação em SP contra Kassab blinda PSDB

Denúncia do MP paulista contra Kassab por fraude em...

Democracia sem povo

Dizem que as eleições de 2018 estão perto, mas...

Camila Pitanga vai cantar com Paulinho da Viola

Fonte: R7 - A atriz Camila Pitanga, que faz a...

para lembrar

Muitas dependentes de crack se prostituem e engravidam de desconhecidos

Lugar de proteção, o útero é o primeiro lar...

Desigualdade, exclusão e violência revelam ‘fascismo social’ no país, diz André Bezerra

Jornal GGN - André Augusto Bezerra, presidente do Conselho Executivo...

PMs derrubam e imobilizam mulher com bebê no colo em Itabira (MG)

Dois policiais militares de Itabira, no interior de Minas...

Americanos são baleados até por baterem na porta errada

O técnico de manutenção na Carolina do Norte tinha acabado de chegar para consertar danos causados por um vazamento. O adolescente na Geórgia estava...

Violência nas escolas: como falar com crianças e adolescentes

 “Mamãe, eu vou poder ir para a escola?” “Por que há massacre?” A professora Gina Vieira, pesquisadora em educação no Distrito Federal, ficou aturdida...

Ministério das Mulheres fecha acordo para instalação da primeira Casa da Mulher Brasileira no Amazonas

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, fechou, nesta sexta-feira (14), acordo com o governador do Amazonas, Wilson Lima, para a implementação da primeira unidade...
-+=