Partidos políticos são ambientes hostis para pessoas negras, diz diretora de instituto

Além da desigualdade de verba, lógica interna dificulta participação política, avalia Vanessa Nascimento, do Peregum

Partidos políticos são ambientes hostis para pessoas negras. A constatação de Vanessa Nascimento, diretora-executiva do Instituto de Referência Negra Peregum, leva em conta as dificuldades encontradas por quem faz parte desse grupo e decide ingressar em uma agremiação.

“Particularmente aquelas que vêm do movimento negro e atuam na lógica de movimentos sociais”, afirma.

Entre os problemas enfrentados está o financiamento de campanha. “A distribuição de recursos é claramente muito díspar quando levamos em conta o fator raça”.

Uma pesquisa realizada pela Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), em parceria com o Instituto Peregum, aponta que homens brancos, que correspondem a 21% da população total do país, conquistaram 65% e 61% das vagas para deputado estadual em 2014 e 2018, respectivamente.

Nas disputas para deputado federal, homens brancos foram eleitos em número quatro vezes maior que homens negros, seis vezes maior que mulheres brancas e mais de 20 vezes maior que o de mulheres negras.

“Como costumamos repetir, enquanto houver racismo, não haverá democracia. É preciso entender para quem é essa democracia da qual o Brasil tanto fala”, diz a diretora.

Segundo Vanessa, não se trata de lutar por uma agenda para os negros do Brasil e sim por uma agenda para o Brasil com os negros.

Em conversa com a Folha, a diretora-executiva da Peregum falou também sobre representatividade paritária na política, violência política, candidaturas negras, mandatos coletivos e educação.

Qual a importância de ter representatividade paritária na política? Precisamos de um governo e um Congresso Nacional que represente de fato a população brasileira, ou seja, que esteja lá para de fato defender os interesses da maioria das pessoas e não apenas os interesses das elites.

E o movimento negro constatou já há muito tempo que, para garantir que sejam defendidos os interesses da população negra, que são também os interesses da maioria da população brasileira, precisamos eleger representantes que façam parte desse grupo.

Ou seja, pessoas que não só são negras, mas que fazem parte do movimento negro, que têm trajetória comprovada de luta antirracista, de luta pela efetivação dos direitos de todos, de combate às desigualdades.

Como costumamos dizer, a agenda do movimento negro não é uma agenda para os negros do Brasil, e sim uma agenda para o Brasil com os negros.

Enquanto houver racismo, não haverá democracia. É preciso entender para quem é essa democracia de que o Brasil tanto fala.

Lideranças negras apontam sofrer racismo dentro dos partidos. Como isso ocorre? A falta de recursos é uma das principais barreiras enfrentadas pelas lideranças [negras]. O fim das doações empresariais e a passagem para o financiamento de campanhas quase que exclusivamente via fundo partidário e fundo eleitoral, em 2015, deu aos partidos uma oportunidade para distribuir seus recursos de forma mais autônoma e, portanto, mais igualitária.

O que constatamos é que as novas regras serviram para mitigar ligeiramente a desigualdade de gênero na distribuição de recursos entre candidaturas, mas não tiveram efeito sobre a de raça. Ou seja, a distribuição de recursos é claramente muito díspar quando levamos em conta o fator raça.

Muitos relataram problemas de combinar a lógica do ativismo nos movimentos sociais aos quais pertencem à lógica de funcionamento dos partidos políticos, que muitas vezes é caracterizada por disputas entre tendências.

A prioridade dada a políticos que já têm mandato na divisão intrapartidária de recursos também acaba dificultando a participação de pessoas negras, já que a representação é historicamente dominada por homens brancos, mesmo no campo da esquerda. Ou seja, a simples operação dessa regra “conservadora” funciona como um obstáculo para a ascensão de forças novas dentro do partido.

O que se constata é que os partidos são em geral ambientes hostis para pessoas negras, particularmente aquelas que vêm do movimento negro e atuam na lógica de movimentos sociais.

Como se dá a violência política contra candidatos negros? Representantes negras eleitas declaram que a sensação de insegurança é magnificada pela solidão da representação negra nas câmaras legislativas brasileiras, dominadas por homens brancos, o que as submete frequentemente a constrangimentos de ordem racista e misógina, bem como pela negligência das estruturas partidárias em enfrentarem essas denúncias e riscos de violência.

Além disso, a atividade política adiciona maior visibilidade e consequentemente maior risco a uma situação de violência, que figura com destaque entre os obstáculos identificados pelas candidaturas negras. O medo da violência é o maior dos receios vividos pelas candidaturas.

Uma pesquisa da Uerj em parceria com a Peregum mostra que pessoas negras desistem de se candidatar. Por que isso acontece? Em primeiro lugar, é claro, está a dificuldade em obter fundos para financiar a própria campanha e, consequentemente, conseguir visibilidade, um mínimo de igualdade de condições com outras candidaturas. Candidaturas negras realmente recebem muito menos recursos do que candidaturas brancas.

Além disso, grande parte das lideranças disse enfrentar dificuldades para se manter financeiramente no chamado período de pré-campanha, quando os recursos de campanha ainda não podem ser utilizados, e também no pós-campanha, caso não sejam eleitas.

Pessoas ouvidas também apontaram ter desistido por sentirem falta de apoio dentro de seu próprio partido e entenderem que seus movimentos ou organizações de origem não poderiam prescindir de sua presença no momento.

Candidaturas negras bateram o recorde de inscritos, considerando eleições nacionais. Podemos esperar a eleição de mais pessoas negras neste ano? É o que esperamos. Mas precisamos ter em mente que não se trata apenas de eleger pessoas negras. A representatividade racial certamente é importante, mas, para nós, o que é crucial é o comprometimento com as pautas que nós do movimento negro defendemos há décadas.

Pautas como acesso à educação e à saúde de qualidade para todas e todos —incluindo aí, para viabilizar isso, por exemplo, as cotas raciais nas universidades públicas e o fim das políticas de austeridade. Outra pauta essencial é a defesa de uma política de segurança pública que defenda as vidas das pessoas negras, e não uma que nos mate.

Os mecanismos de financiamento para candidaturas de mulheres e pessoas negras que passam a vigorar neste ano são o suficiente para melhorarmos a participação política desses grupos? Não. Os partidos em geral, e mesmo os da esquerda, são ainda muito insensíveis às demandas por mais diversidade na representação política.

Em dezembro de 2021 o TSE aprovou uma resolução (Nº 23.664) determinando que os votos para candidaturas de mulheres e negros para Câmara dos Deputados, nas eleições de 2022 a 2030, fossem contabilizados em dobro para a distribuição de 35% do fundo eleitoral. Mas a maneira pela qual a divisão dos recursos será feita entre os candidatos de cada grupo não é regulada por ela. Na verdade, nós só vamos conseguir avaliar o resultado dessa medida nas eleições municipais de 2024 e nas eleições nacionais de 2026.

De fato aumentou o número de candidaturas negras, e isso é positivo. [Agora] temos que analisar quais fatores específicos contribuíram para isso e mantê-los. Vimos diversos casos de pessoas que alteraram sua autodeclaração entre a última eleição e esta. Isso pode ser um resultado positivo da luta antirracista. Mas também não podemos deixar de considerar a possibilidade de que muitos dos que se declararam negros neste ano o tenham feito pelas vantagens financeiras que isso dá à sua candidatura e ao seu partido.

Os mandatos coletivos são uma alternativa para a inserção de negros na política? Essa pergunta tem algumas dimensões diferentes. Por um lado, sim, as candidaturas coletivas têm sido utilizadas por grupos historicamente alijados da política institucional como forma de conseguir obter um mandato.

Isso porque a candidatura coletiva permite que pessoas que não teriam chance de se eleger individualmente se juntem e consigam, num esforço coletivo de mobilização de recursos, opiniões e votos, eventualmente se eleger.

Mas, como sabemos, não necessariamente as candidaturas coletivas refletem um projeto coletivo de seus integrantes.

Os entrevistados na nossa pesquisa veem, em geral, o mandato coletivo com bons olhos, tanto porque potencializa a organização da campanha quanto porque, uma vez eleito, o mandato segue uma lógica de representação política menos individualista e mais próxima da lógica do movimento social.

Mas o outro lado dessa moeda é a possibilidade de surgirem alguns atritos por conta da partilha dos recursos entre os correpresentantes, e também por discordâncias políticas entre eles, especialmente quando eles vêm de áreas diferentes, têm pautas distintas etc.

Nesse sentido, às vezes, candidaturas individuais podem ser até mais coletivas do que as chapas coletivas.

A pesquisa de Peregum com a Uerj mostra que as candidaturas no Legislativo se concentram em pessoas com curso superior. Isso significa necessariamente qualidade dos representantes eleitos? Esse aspecto pode ser excludente para a participação política de alguns grupos sociais? O Instituto de Referência Negra Peregum tem entre suas lutas a educação, principalmente o acesso da população negra ao ensino superior.

Mas, falando da política institucional, ter curso superior não significa, em absoluto, ser mais qualificado para ser um representante da população. Muito mais importante do que um título é o conhecimento sobre a vida real que a maioria das pessoas leva e também sobre as demandas dos grupos mais vulneráveis e historicamente excluídos.

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