Na última viagem a Londres, a dramaturga Katori Hall aguardava no saguão do hotel enquanto seu quarto era arrumado.
Quando um funcionário se aproximou, ela sentiu alívio. “Pensei que iria para o apartamento. Mas ele perguntou: ‘Você está aqui para o emprego de camareira, certo?’.”
“Um afro-americano ocupa a Casa Branca e a primeira suposição é que os negros estão na Terra para limpar a sujeita dos brancos”, desabafa.
“Raça importa, por isso faz sentido falar no assunto até destruir noções preconceituosas”, continua Hall.
Katori Hall, 30, desafiou um tabu ao escrever “The Mountaintop”, peça que recria a última noite de Martin Luther King Jr. (1929-1968), ativista influente da luta pelos direitos civis americanos.
Na Broadway até 22 de janeiro, “The Mountaintop” humaniza King, “até hoje reverenciado como santo”. O King de Katori Hall vai ao banheiro, fuma, mente para a mulher, é mulherengo.
“A minha geração tem uma visão simplista”, diz. “Mais do que integracionista, King foi um radical que pregou justiça não só entre as raças mas entre as classes. Ele denunciou o militarismo dos EUA.”
Antes da temporada na Broadway, em que é dirigida por Kenny Leon, “The Mountaintop” estreou num pequeno teatro de Londres.
Com o êxito da peça, Katori se tornou em 2010 a primeira dramaturga negra a ganhar o Olivier Award na categoria nova obra teatral.
ÚLTIMO SERMÃO
Na véspera do seu assassinato, ocorrido em 4 de abril de 1968, na frente do Lorraine Motel, em Memphis, Tennessee, King proferiu o sermão “I’ve Been to the Mountaintop” (algo como “eu estive no cume da montanha”).
No discurso, intuiu a morte próxima e disse ter visto “a terra prometida”, à qual os americanos chegariam. “Os EUA vão demorar para atingir esse ponto”, diz Hall.
A dramaturga nasceu em Memphis. Autora de dez peças, quatro das quais publicadas em “Katori Hall Plays One”, ela admite ter a cidade natal como “musa”.
“Mas eu não falo das minhas experiências. Escrevo sobre aquilo sobre que gostaria de saber mais. É o meu jeito de tornar o passado real.”
Inspirada na sua mãe, que lamenta ter perdido o último sermão, Katori criou para a peça uma camareira misteriosa (Angela Bassett).
No quarto 306, a funcionária questiona as atitudes de King (Samuel L. Jackson, o ator mais rentável da história do cinema, segundo o livro dos recordes “Guinness”).
“É desconcertante ver um homem comum em confronto com a própria mortalidade”, diz. “King foi grandioso. Mas, como todos, esteve sujeito à condição humana.”