‘Pedi a Deus para morrer’, diz jovem torturada pelo ex por mais de um ano

Agressor só foi descoberto e preso após acidente de moto no interior de GO.
‘Não podia chorar, senão apanhava mais’, diz adolescente de Votorantim.

Por Jomar Bellini, do G1 

A adolescente de 17 anos que viveu um verdadeiro pesadelo ao ser torturada por mais de um ano pelo ex-namorado, de 21, em uma pequena cidade no interior de Goiás, respira aliviada ao lado da família em Votorantim (SP). Apesar das diversas marcas que poderiam denunciar as agressões a qualquer momento, Gustavo Vinícius de Oliveira Bernardino só foi preso após um acidente de trânsito, quando as cicatrizes e ferimentos espalhados por todo o corpo dela foram descobertos. Ele nega o crime.

A adolescente, que ainda passa por acompanhamento médico, falou pela primeira vez sobre o assunto nesta quarta-feira (27), em entrevista ao G1. “Perdi a conta de quantas cicatrizes eu tenho no meu corpo. No começo eu contava, mas parei porque são mais de 30, mais de 50. Ele falava que gostava de arma branca porque matava aos poucos. Eu pedia para Deus tirar a minha vida, mas não ia adiantar”, afirma.

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Jovem tem marcas e cicatrizes espalhadas por
todo o corpo (Foto: Jomar Bellini/G1)

As imagens são fortes para quem entra pela primeira em uma pequena casa na cidade de Votorantim. A calça comprida e o gorro na cabeça tentam esconder as cicatrizes que carrega no corpo e na alma.

Dores sentidas até hoje, principalmente em um dos braços, recentemente engessado. A jovem movimenta as mãos durante a conversa, mas não consegue mexer todos os dedos. Por conta das agressões, dois deles estão quebrados e outros trincados.

O relato da adolescente sobre o drama vivido ao lado do primeiro namorado segue, entretanto, sem engasgos ou uma gota de lágrima sequer. Reflexo de quem aprendeu com o sofrimento a não expressar o que sente. “Eu comecei a aguentar a dor para ninguém perceber, ele notou e fazia eu mesma fechar os machucados. Com o tempo, não tinha mais sensibilidade em várias partes do corpo”, conta.

Namoro
O casal, que morava em Votorantim, se conheceu em um baile funk, quando a jovem acabara de fazer 15 anos. Conforme eles foram se conhecendo, passaram a morar juntos. A primeira agressão veio um mês após o começo do namoro.

Segundo a jovem, eles estavam voltando da igreja quando ele a trancou dentro de um quarto e começou a agredi-la com tapas, socos e um cabo de vassoura. “Ele falou que eu estava olhando para outras pessoas e começou a me bater. Eu fiquei assustada e tentei fugir, mas ele falava que iria me matar e quem entrasse na frente também. Eu não sabia que ele era violento desse jeito.”

Com medo de denunciar para a família as agressões que sofria, seguiu com o namoro quieta. Ela conta que os parentes até chegaram a desconfiar dos maus-tratos, mas foi obrigada a falar que estava “tudo bem”. “Eu não podia mexer na boca que ele falava que eu estava com ‘sem vergonhice’ para cima dos outros. Ele não desgrudava de mim, então não tinha como falar [para os meus pais]”.

A garota lembra que sete meses depois do início do namoro o rapaz a obrigou a se mudar para outro estado, na cidade de Santa Helena de Góias (GO).

“Para a minha família ele inventava que era para arrumar serviço, que tinha parentes lá, mas nunca cheguei a conhecer. Foi como uma obrigação, talvez por medo de alguém descobrir o que ele fazia”, diz. Segundo a jovem, o rapaz também teria sofrido ameaças por conta de desavenças com outras pessoas em Votorantim.

Agressões e medo
A jovem relata que nos primeiros meses em Goiás chegou até a dormir na rua. Eles moraram em uma pensão e depois em uma casa alugada em uma chácara. Viviam da venda de CDs piratas em uma banca, de coisas encontradas na rua e de balas em semafóros. O casal chegou até a pedir dinheiro e comida na rua.

A adolescente conta que, após a mudança, as agressões ficaram piores e mais constantes, quase que diárias. “Era uma tortura, e ele gostava. Batia em mim por qualquer motivo e dava risada”, diz, ao afirmar que o homem não usava drogas. “Ele falava para eu fazer comida em um minuto. Como o arroz e feijão demora, ele vinha e já me batia com qualquer coisa que estivesse perto. Facão, faca de cozinha, pedaço de caibro, ferro, chinelo, tudo o que estivesse na frente. Ele também me mordia. Eu queria chorar, mas não podia.”

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ovem teria sido agredida com facas, pedaços de
ferro e até mordidas (Foto: Jomar Bellini/G1)

Em uma das agressões, a mais violenta, a garota ficou com uma eterna cicatriz no rosto, próxima aos olhos. “Ele bateu com uma garrafa PET cheia de água. Subiu em cima de mim na cama, prendeu meus braços e ‘tacou’ na minha cara. Eu virei para não bater no meio do rosto, foi quando fez um buraco.  Não sei como não fiquei cega, porque passei um mês sem enxergar.”

A jovem relata que várias vezes foi atingida com golpes de facão na cabeça, tanto com o cabo quanto pela lâmina. “[Ele] Jogava o facão na minha cabeça e foi abrindo mais. Eu só via pedaço de couro cabeludo saindo com fios de cabelo. Fui perdendo a sensibilidade e não sentia mais nada. Ele quebrou o meu dedo com o facão. Conforme eu ia me defendendo, ele me atingia.”

Prisão
Todos os ferimentos eram estancados por ela mesma e em casa, sem a ajuda de profissionais. “Moía flor e passava pasta de dente para tampar o ferimento. Já tampei com terra também. O que achava na frente eu colocava para tampar os buracos, porque não tinha remédio.”

O contato com a família em São Paulo só era permitido via telefone, sempre com a “supervisão” do namorado.Segundo a jovem, ela era obrigada a falar para a mãe que levava uma boa vida em Goiás, com casa, moto e dinheiro. “Ele ficava com um facão do meu lado me ameaçando, mandando eu falar que estava tudo bem. Uma vez eu quase chorei porque tinha acabado de apanhar, mas ele desligou o telefone, me bateu de novo e quebrou o chip do celular.”

A adolescente também diz que até tentou escapar, mas não conseguia pedir socorro. “Eu não conhecia ninguém lá [em Goiás]. Quando ele não estava perto, eu só saía com conhecidos que me vigiavam e com o corpo inteiro coberto para esconder as marcas. Um dia tentei fugir, mas acabei pegando uma rua errada. Ele me achou na metade do caminho e voltou me batendo. Fiquei com medo de escapar. Era que nem uma prisão. Eu tinha que suportar porque se eu chorasse ele batia mais. Aprendi a segurar a minha dor. Tinha que apanhar quieta”, lembra.

Acidente de moto
As agressões só foram descobertas após um acidente de trânsito em Goiás, no último dia 12 de julho, quando o casal sofreu ferimentos leves. Durante atendimento da ocorrência, o Corpo de Bombeiros notou machucados antigos e infeccionados na cabeça da vítima e a levaram para o Hospital de Urgências de Santa Helena de Goiás (Hurso). “Minha cabeça estava aberta e com bichos. Todo mundo olhou porque sabia que não era daquele acidente”, lembra.

A família da jovem foi até a cidade após ser contatada pelo Conselho Tutelar de Santa Helena de Goiás. A Polícia Civil prendeu o jovem no dia 18, quando ele foi levado para o Centro de Inserção Social (CIS) de Santa Helena de Goiás.

“O autor tinha uma banquinha de CDs piratas e, para que ele fosse detido o quanto antes, foi autuado em flagrante por violação de direitos autorais. Depois a prisão dele foi convertida em preventiva. Ele foi indiciado por tortura e subtração de incapaz, que é quando tira um menor de casa sem a autorização dos pais. Ele também vai responder por desacato, porque ameaçou conselheiras tutelares enquanto a menor estava internada”, relatou o delegado responsável pelo caso, Thiago Latorre, ao G1 em Goiás.

Alívio
De volta a Votorantim, a jovem respira aliviada e em segurança. “Agora, em casa, eu me sinto melhor. Eu queria morrer e quase me matei. Se não fosse o acidente eu acho que estaria morta”, fala. Hoje, ao lado da família, ela se diz sem medos e feliz por estar viva. “Eu tenho raiva e nojo dele [o ex-namorado]. Ele estava me matando aos poucos. Não sei como não morri com os golpes de facão na cabeça. Eu quero que ele pague por isso, por cada cicatriz que eu tenho no meu corpo.”

A garota também já faz planos para o futuro, quando quer escrever uma nova história. “Foi uma lição, para eu aprender. Agora vou tomar mais cuidado. Eu vou voltar a estudar de novo e fazer as coisas direito. Fazer algum curso, tirar a minha carta [de habilitação]. Seguir em frente”, finaliza.

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Agressões aconteceram na cidade de Santa Helena de Goiás (Foto: Reprodução/ TV Anhanguera)

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