Pela primeira vez, três diplomatas negros brasileiros ocupam postos em Washington

Minoria na carreira, eles entraram no Itamaraty pelo Programa de Ação Afirmativa; o trio trabalha na Embaixada do Brasil nos EUA e na missão brasileira na Organização dos Estados Americanos (OEA)

De diferentes regiões brasileiras, três diplomatas de carreira negros protagonizam um feito histórico em uma das capitais mais estratégicas para o Itamaraty, a dos EUA. Pela primeira vez, esses afrodescendentes, minoria na carreira diplomática, servem na embaixada brasileira e na missão do Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA) em Washington, onde o abolicionista Joaquim Nabuco foi o primeiro embaixador brasileiro, em 1905.

Marise Ribeiro Nogueira, 56, Jackson Luiz Lima Oliveira, 51, e Ernesto Batista Mané Júnior, 38, entraram no Itamaraty pelo Programa de Ação Afirmativa (PAA) coordenado pelo Instituto Rio Branco. Criado em 2002, o PAA foi o primeiro de inclusão racial da Esplanada dos Ministérios, fruto de compromissos assinados pelo Brasil durante a III Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban, na África do Sul, em 2001. Por meio de concurso público, o PAA seleciona candidatos negros para receberem uma bolsa anual de R$ 30 mil para pagar as despesas com a preparação para o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD).

Como o Itamaraty não pede declaração de etnia àqueles que ingressam na carreira diplomática, não há um total oficial de negros diplomatas – estimativas indicam que seriam apenas 5% de um total de 1.537 na ativa. No entanto, a identificação por etnia dos alunos do Instituto Rio Branco passou a existir a partir do PAA e também entre os admitidos com base na lei de 2014 que estabeleceu reserva de 20% das vagas nos concursos públicos para candidatos negros. De 2002 a 2014, 20 candidatos beneficiados com a bolsa ingressaram no instituto, e 32 candidatos negros foram aprovados no concurso de 2014 a 2020. Destes, 27 foram em vagas reservadas na lei de cotas e cinco nas vagas destinadas à ampla concorrência, disse o ministério.

A carioca Marise Nogueira foi a primeira bolsista do programa, em 2002, aprovada no CACD. Por causa dele, a diplomata pôde reduzir sua jornada de trabalho no Rio e intensificar os estudos. Filha de uma agente administrativa e de um torneiro mecânico, Nogueira se formou em medicina e, com ajuda de bolsas, estudou inglês, francês e fez mestrado. Atualmente, ela ocupa a função de conselheira —dois níveis abaixo do cargo de embaixadora — na embaixada em Washington. Para ela, o fato de haver três diplomatas negros na capital americana indica que valeu a pena investir no programa de ação afirmativa:

— Nosso encontro em Washington é resultado de uma política pública que vem dando certo. Ao apoiar a diversidade de sua representação por meio de programas como a Bolsa Prêmio de Vocação para a Diplomacia para Afrodescendentes, o governo valoriza a identidade do povo brasileiro, busca reparar desigualdades e reitera o compromisso de promover a igualdade racial — afirmou.

Filho de imigrante

Jackson Lima nasceu em Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, e percorreu uma trajetória de muito esforço para conseguir a bolsa e passar no concurso. Era professor de português/inglês em Salvador quando decidiu mudar de profissão. Sem base em Economia, precisou pagar professores particulares para garantir uma boa classificação. Para o pagamento, usou recursos da bolsa do PAA.

— Sem o incentivo do governo, jamais teria condições de passar no concurso. Nem eu nem todos os demais negros que foram aprovados. O Estado tem o dever moral de corrigir o descompasso da igualdade racial no Brasil e, ao mesmo tempo, aproveitar para aumentar a diversidade do quadro de diplomatas — afirmou Lima.

Nos últimos quatro anos, o diplomata serviu na Nigéria, na Zâmbia e foi assessor no Departamento da África do Itamaraty. Em Washington, atua na OEA, tratando de temas relacionados ao desenvolvimento integral. Também cursa mestrado na Universidade George Mason sobre paz e resolução de conflitos.

Natural de João Pessoa e filho de um imigrante da Guiné-Bissau e de uma brasileira, Ernesto Mané Jr. é doutor em Física Nuclear pela Universidade de Manchester, no Reino Unido. Desde que ingressou na carreira diplomática, há sete anos, ele vem aliando a física com a diplomacia em seu trabalho. Por isso, foi designado para trabalhar no setor político da embaixada em Washington na área de desarmamento e não-proliferação de armas de destruição em massa. Ele também acompanha a política de segurança dos Estados Unidos para a região da Ásia-Pacífico.

— O que diria Joaquim Nabuco, um abolicionista convicto e primeiro embaixador do Brasil nos EUA, ao ver três diplomatas negros servindo a nosso país em um posto tão estratégico? — pergunta.

Para a embaixadora Sônia Regina Guimarães Gomes, ex-diretora do Departamento de Administração e ex-Coordenadora do Comitê Gestor de Gênero e Raça do Itamaraty, em que Marise, Jackson e Ernesto foram colaboradores, a presença dos três diplomatas em Washington demonstra maturidade da sociedade brasileira. “Abraçar a diferença faz a diferença. Eles abrem portas e caminhos e mostram que é possível o jovem negro ascender a postos de destaque”, afirmou.

+ sobre o tema

Quem é racista o ano todo também é racista no Carnaval; a diferença é que usa fantasia

por Eliano Jorge no Terra Já não são tão habituais...

Racismo no Hotel Sol Victoria Marina em Salvador

Uma briga entre frequentadores do Restaurante Mahi-Mahi e um...

Amor afrocentrado é, além de cuidado, desintoxicação

Já faz algum tempo que eu queria falar sobre...

para lembrar

Cotistas com mau desempenho poderão perder bolsa

Ministro estabelece critério para pagar benefício de R$ 400...

Debate marca lançamento da publicação Parlamento e Racismo na Mídia

A análise, fruto da parceria do Inesc e da ANDI, traça um...

O ataque racista à filha de Giovanna Ewbank e a busca psicótica por atenção nas redes sociais. Por Jean Wyllys

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO FACEBOOK DE JEAN WYLLYS Por Jean Wyllys, no DCM Reprodução...

Fim de cotas pode anular vestibular, diz governo do Rio

Fonte: Estado de São Paulo RIO -...
spot_imgspot_img

Apostas viram epidemia e pautam voto dos jovens

Tão real quanto as chamas que destroem e a fumaça que varre territórios é a epidemia de apostas que assola o Brasil. A prática,...

Policiais que abordaram jovens negros filhos de diplomatas no RJ viram réus

Os policiais militares que abordaram quatro adolescentes – três deles negros e filhos de diplomatas – em Ipanema se tornaram réus pelos crimes de...

Os homens que não rompem com a lógica machista

Como uma mulher crítica às plataformas de redes sociais e seus usos, penso ser fundamental termos compromisso e responsabilidade ao falarmos de certos casos....
-+=