Quem luta contra o racismo estrutural está advogando pela concretização do direito ao desenvolvimento tanto quanto Killmonger em Pantera Negra
Por Veyzon Campos Muniz, Do Justificando

Pantera Negra, primeiro super-herói negro das histórias em quadrinhos, criado na Marvel Comics por Stan Lee e Jack Kirby em 1966, em meio a intensa luta por direitos civis das pessoas negras na experiência estadunidense, foi transmutado para as telas do cinema em 2018, na esteira de um importante movimento popular que denunciou a ausência de representatividade negra no cinema e, consequentemente, nas respectivas premiações do segmento.
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, por sua vez, em fevereiro do corrente ano, antes alertada por disseminar a invisibilidade do negro na sétima arte, reconheceu Pantera Negra como o primeiro filme baseado em histórias de super-heróis a ser nomeado ao Oscar de Melhor Filme e outras seis categorias. Dos sete quesitos para os quais o longa recebeu indicação, ganhou três. Assim, Ruth E. Carter tornou-se a primeira mulher negra a ganhar a láurea de Melhor Figurino e Hannah Beachler tornou-se a primeira negra indicada e vencedora em Melhor Design de Produção.
E são justamente os trabalhos de Ruth e Hannah que mais impactam o espectador do filme que, em pouco mais de cento de trinta minutos, imerge em uma viagem para Wakanda, uma nação centro-africana que possui uma vasta reserva mineral. Isolada do resto do mundo, a monarquia pauta sua política interna na disseminação massiva do desenvolvimento científico-tecnológico calculado na exploração consciente do meio ambiente. Contudo, em sua política externa, mostra-se como um país muito pobre e sem qualidade de vida. Trata-se de uma tática de autopreservação.
Irmão de T’Chaka, rei de Wakanda, N’Jobu (Sterling K. Brown) é enviado para os Estados Unidos, nos anos 1980, em missão secreta de reconhecimento e mapeamento de demandas para a nação africana. Ao ver um Estado omisso a violações estruturais de direitos humanos de pessoas negras, discriminações raciais cotidianas e negras e negros vulnerabilizados, ele planeja compartilhar a ciência e a tecnologia de seu povo com as pessoas de ascendência afro-americanas para ajudá-las a lutar contra tal sistema de opressões. O monarca, para preservar a sua agenda isolacionista, dá uma solução fatal ao seu irmão, deixando assim o menino Erick órfão.
Erick Stevens (Michael B. Jordan) cresce sem pai, mas consciente de sua ascendência. Torna-se soldado no Exército norte-americano e adota a alcunha “Killmonger”, em razão do expressivo número de pessoas que matou e registrou na própria pele por escarificação. Ao colocar em prática o seu plano de reclamar o trono de Wakanda, em uma missão no Museu Britânico de Londres, ele questiona a uma museóloga branca: “Como você acha que seus ancestrais conseguiram os objetos? Acha que pagaram um preço justo? Ou que eles tiraram de nós, como tiram tudo o que querem?”
A expressão da africanidade nos questionamentos de Killmonger é uma lição a ser compreendida e apreendida. Com nítidas bases decoloniais, ele traz a baila o protagonismo das populações acometidas pelos crimes contra a humanidade que sustentaram os sistemas econômicos escravagistas, assim como presta reverência às raízes culturais de origem africana. A ancestralidade de sua fala remete aos modos de ser e de viver africanos, mas também fundamenta a organização de lutas por reconhecimento, justiça e desenvolvimento para afrodescendentes de todos os lugares nos dias de hoje.
O desenvolvimento como direito humano se configura por três elementos fundamentais (Nieto, 2001, p. 59): um sujeito ativo, seu titular, que pode ser qualquer ser humano, considerado individual ou coletivamente, a quem se atribui uma garantia fundamental; um sujeito passivo, frente a quem se exige o gozo e o exercício desse direito, o qual tem uma obrigação positiva ou negativa para a satisfação da pretensão do sujeito ativo; e um objeto determinado, consistente na efetividade integral do objeto postulado.
Tal desenho, que se assemelha à estruturação jurídico-processual clássica, apresenta peculiaridades, uma vez que o direito ao desenvolvimento é entendido como um direito de solidariedade, composto por um conjunto conglobante de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.
Assim, alguém que: litiga contra uma parte que incorre em ato racialmente discriminatório; postula em uma corte internacional contra um Estado visando eliminar formas estruturais de racismo; ou pleiteia, por meio de redes e articulações sociais, a erradicação de práticas institucionais nocivas aos direitos humanos de negras e negros, está advogando pela concretização do direito ao desenvolvimento, tanto quanto Killmonger em suas ações diretas.
Ao longo do filme, porém, ele catalisa o necessário debate sobre a necessidade de mudança de um estado de coisas em que a opressão e o genocídio de pessoas negras são naturalizados. Pode-se não concordar com a práxis de Erick, eis que é o antagonista da obra, mas não há como ignorar sua impactante denúncia. Ele alerta que a efetividade do direito ao desenvolvimento não se dá sem luta.
O desenvolvimento sustentável somente se realiza em um ambiente livre de discriminação racial. Atos e manifestações públicas que propagam preconceitos e projetam a exclusão de pessoas negras correspondem à erosão da sustentabilidade. As discriminações jurídicas e sociais, institucionais, estruturais e intergeracionais, ao seu turno, esvaziam a agenda sustentável antirracista. Assim, seguindo o destino paterno, ao morrer em combate, ele afirma: “me lance ao oceano com meus ancestrais, que pularam de navios pois sabiam que a morte era melhor do que a escravidão”.
Tem-se, nessa segunda lição de Killmonger, um relevante manifesto por uma postura pró-ativa e protetiva de Wakanda em relação aos seus descendentes. T’Challa (Chadwick Boseman), herdeiro do trono do país e identidade paralela de Pantera Negra, encaminhando-se para um viés mais democrático de governança, não ignora os fundamentos e argumentos do falecido primo e encaminha o fim do isolamento estratégico de sua nação. “Em tempos de crise, os sábios constroem pontes, enquanto os tolos constroem muros”, aduz em Assembleia da Organização das Nações Unidas – em cena pós-créditos do filme.
Portanto, é inegável que o filme de Ryan Coogler proporciona uma fundamental reflexão sobre democratização do poder e mecanismos de erradicação da opressão a partir da cooperação internacional em prol do desenvolvimento. Em um mundo em que concepções racistas são difundidas sem constrangimentos e políticas isolacionistas são entendidas como soluções positivas para problemáticas complexas, as lições de Killmonger asseveram que desenvolvimento, especialmente para a população afrodescendente, é “direito inalienável, pelo qual todos os seres humanos têm a garantia de participar, de contribuir e de desfrutar de um desenvolvimento econômico, social, cultural e político no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados” (ONU, 1986).