Pelo direito de ser, por Sueli Carneiro

(Foto: Marcus Steinmayer)

Durante os anos de 1992 e 1993, a Federação Israelita de São Paulo, o Centro de Tradições Nordestinas e o Geledés Instituto da Mulher Negra receberam ameaças de grupos skinheads de São Paulo em geral, através de cartas, com toda sorte de impropérios sobre judeus, negros e nordestinos.

Por Sueli Carneiro

Chegaram a dar tiros no Centro de Tradições Nordestinos e em outros estados a violarem cemitérios judeus. E para os negros eles reservaram uma espécie de linchamento no qual o estudante negro Fábio Henrique Oliveira Santos foi espancado até a morte por 30 carecas em 1993.

As três entidades-alvos articularam-se naquela oportunidade, para em ações unitárias, darem visibilidade á sociedade daquela violência, chamar a atenção das autoridades públicas e uma demonstração de que as minorias vítimas de racismo, discriminação e intolerância, podem e devem atuar juntas para combater a ascensão dessas ideologias intolerantes em nosso país.

Essa articulação culminou num grande ato de repúdio e de afirmação das identidades étnico-racial e religiosa das comunidades envolvidas em que seus artistas, intelectuais, lideranças políticas com o apoio massivo das diferentes forças políticas: os partidos políticos, centrais sindicais, lideranças religiosas, formadores de opinião, representantes de governos puderam expressar a vontade política ineqüívoca de impedir o crescimento dessas ideologias em nosso país. Um ato que atraiu ao Vale do Anhangabau de São Paulo, em torno de 10.000 pessoas.
Essa resposta contundente da sociedade de repúdio a esses grupos naquele momento resultou na criação da 1ª Delegacia de Crimes Raciais do Brasil (extinta no atual governo Covas) e o envolvimento da Polícia Federal permitiu também a identificação dos autores das agressões racistas.

O sucesso dessas ações nos conduziram ao erro de baixar a nossa vigilância, a nos desarticularmos e nos desmobilizarmos depois de empurrar para as sombras os herdeiros de Hitler. Ou seja esquecemos do ovo da serpente. E isso pode ter custado a vida de Edson Neri da Silva, negro e homossexual barbaramente assinado por 18 skinheads em fevereiro do ano passado. Homicídio triplamente qualificado e assim definido: motivo torpe, meio cruel e impossibilidade de defesa da vítima. Pena de 21 anos de prisão em regime fechado.

A admirável e inédita sentença do juiz Fernando de Barros Vidal ao considerar que o crime foi ” um grande golpe de traição á idéia de democracia” e que ” a intolerância como princípio de ação é absolutamente censurável e com ela de igual modo o direito penal há de se revelar inflexível” resgata a dignidade humana não apenas de Edson Neri da Silva mas também através dele simbolicamente, outras vítimas de intolerância são resgatadas como Jorge Paulo, mendigo, negro, 48 anos queimado enquanto dormia na Cinelândia no Rio de Janeiro, e o índio Galdino, pataxó queimado por jovens de classe média em Brasília.

A sentença desse caso dialoga também com a resistência que outros países, em especial, a Alemanha vem desenvolvendo no sentido de coibir a ação desses grupos sendo um dos exemplos a sentença – uma das mais severas já aplicadas pelo Estado alemão a esse tipo de crime – atribuída no ano passado a três neonazistas pelo assassinato do professor moçambicano Alberto Adriano por eles espancado até a morte. Um deles, maior de idade foi condenado á prisão perpétua, os outros dois, menores, aos quais não podem ser atribuídas penas superiores a dez anos, foram condenados a 9 anos de prisão.

Os ataques terroristas desses skinheads no Brasil são protagonizados por jovens ideologicamente confusos. O paradoxo desse casos fica por conta da presença entre os acusados de um afrodescendente, candidato a uma vaga de membro honorário de algum novo Reich, para desespero dos discípulos de Hitler ortodoxos. Dimensões perversas e assustadoras do racismo no Brasil: a desumanização, a eliminação física pura e simples ou a opção por tornar-se o outro, o opressor racista e intolerante! E talvez assim, conseguir ser aceito.

Apesar de confusos eles são organizados, e portanto não podemos subestimá-los. Então, é preciso investigá-las com rigor, de maneira séria e contínua, particularmente nesse momento em que eles retornam, revigorados pela ascensão do neonazismo na Europa e dos grupos de supremacia branca nos EUA. Vale lembrar um princípio básica da segurança pública: para que haja prevenção eficaz, é preciso que haja investigação e punição exemplar aos responsáveis, naquilo que a lei prevê.

Por isso é imperioso que os grupos discriminados permaneçam vigilantes, organizados e em luta para que a tolerância possa se tornar um valor efetivo no mundo. As organizações de gays e lésbicas que se mantiveram mobilizadas, acompanhando esse processo em todos as suas fases, o firme posicionamento dos jurados, do Ministério Público e da Magistratura, na defesa do direito inalienável das pessoas serem o que são ou o que optam por ser, sãos responsáveis por essa vitória que constitue um alento na crença da democracia e na Justiça, e o único caminho para eliminar o ovo da serpente.

Portanto, que essa importante decisão contra a intolerância não nos faça dispersar. Alguém já nos alertou que : “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça a justiça em todo lugar”.

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