Realidade estatística, por Sueli Carneiro

Em 21 de março último comemorou-se o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. A revista Veja trouxe em relação ao tema a matéria ‘‘O apartheid daqui”, cuja chamada diz: ‘‘Pesquisa mostra que a educação dos negros no Brasil é pior que na África do Sul”. A matéria se inicia assim: ‘‘Acaba de sair do forno outra pesquisa sobre racismo no Brasil. Como as anteriores, o estudo, feito desta vez pelo Ipea, constata a situação de inferioridade econômica e social dos negros em relação aos brancos”.

Por Sueli Carneiro

O paradoxo dessa matéria está no fato de essa data ter sido instituída pela ONU em 1966 em repúdio ao massacre ocorrido, no mesmo ano, em Sharpeville, cidade da África do Sul, no qual, dos vinte mil negros que protestavam contra a ‘‘lei do passe”, 69 foram mortos e 186 feridos pelo exército sul-africano quando no Brasil experimentávamos o auge do nosso mito de democracia racial. 35 anos após esse fato temos que nos defrontar com a brutal realidade dos negros brasileiros apresentarem hoje índices de escolaridade inferiores aos dos sul-africanos que por décadas viveram sob o regime do apartheid.

As pesquisas que vêm sendo desenvolvidas sobre as desigualdades raciais, especialmente por órgãos governamentais como o Ipea, têm sido a principal alavanca para o reconhecimento dos negros brasileiros como um segmento com características específicas e desvantajosas em termos de inserção social no país.

Elas cada vez mais desautorizam as idéias consagradas em nossa sociedade sobre a inexistência de um problema racial. Questionam a simplificação de que o problema do Brasil é social e não racial. Recusam eufemismos como o de apartheid social. E, sobretudo, indicam que as políticas universalistas historicamente implementadas não têm sido capazes de alterar o padrão de desigualdades existentes entre negros e brancos na sociedade.

No entanto, chama a atenção a frase usada pela Veja: ‘‘como as anteriores”. Reflete uma sensação de que há uma certa saturação estatística da informação sobre as desigualdades raciais nos últimos anos, ao lado de um vazio total de iniciativas de reversão desse quadro de desigualdade. E o final da matéria expressa a descrença de que o país esteja ‘‘fazendo sua parte para resolver as diferenças raciais”.

Esse vazio de implementação de políticas de promoção da igualdade de oportunidades torna os negros brasileiros numa realidade estatística, uma abstração que jamais se consubstancia em realidade política. Constata-se a desigualdade, em alguns casos lamenta-se. Mas parece não haver nada que se possa ou se queira fazer em relação ao problema.

De concreto, há apenas algum reconhecimento oficial da gravidade da desigualdade racial; no entanto, as ações para combater esse mal não ultrapassam, via de regra, os gestos simbólicos, ou a retórica bem intencionada. No Orçamento da União não existe a palavra negro, no orçamento da Educação nenhuma rubrica.

Argumenta-se que a falta de consenso, especialmente no âmbito governamental, em relação à implementação de políticas específicas é o que as inibe. No entanto, várias agendas sobre as quais não há também consenso no governo e na sociedade são implantadas por força da vontade política do governo em relação a elas.

A urgência de implementação de políticas públicas de promoção da igualdade racial no Brasil decorre de um imperativo ético e moral que reconhece a indivisibilidade humana e, por conseguinte, condena toda forma de discriminação.

É também um imperativo de ordem econômica pelo que representa em termos de perda de ativos a exclusão de 44% da população do acesso ao consumo, ao desenvolvimento e para a capacidade competitiva do país; e politicamente impacta também a consolidação da democracia e unificação desse país, apartado racialmente pela exclusão racial.

Tendo em vista todos os dados estatísticos já conhecidos, os termos exatos dos debates com vistas à eliminação da discriminação racial seriam:

Que taxa de redução do analfabetismo na população negra vamos estabelecer para prestar contas ao mundo em 2006, quando da provável realização da Conferência Mundial Racismo + 5, na qual os Estados devem apresentar os resultados alcançados pelas políticas a serem implementadas para a eliminação do racismo e da desigualdade racial a partir das decisões da Conferência Mundial Contra o Racismo, que ocorrerá esse ano em Durban na África do Sul? Que taxa de redução do desemprego dos afro-brasileiros vamos apresentar? Que taxa de redução da evasão escolar de crianças e adolescentes negros? Que taxa de ampliação da presença negra no nível superior? Que taxa de aproximação da esperança de vida de brancos e negros? Que campanhas de valorização da população negra e de combate ao racismo desencadeamos nos veículos de comunicação? Que incentivos o governo brasileiro propôs às empresas para impulsionar a contratação e promoção profissional de afro-descendentes? Quantas comunidades remanescentes de quilombos terão os títulos de propriedade de suas terras ancestrais regulamentados?

Essas são algumas das questões que esperam respostas concretas em termos de políticas públicas que, em sendo politicamente acordadas e implementadas, permitiriam que os negros deixassem de ser apenas uma realidade estatística neste país.

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