Pobreza além da renda: as crianças e jovens pobres no Brasil

Entendimento mais amplo do conceito pode classificar famílias dependendo do nível de acesso a serviços que elas têm

Dispor de apenas um salário mínimo ou menos para sustentar toda uma família. Acordar e não ter o que comer. Trabalhar de sol a sol fazendo bicos, desde muito jovem. Fazer da merenda escolar a única ou principal refeição do dia. Não conseguir comprar bens de consumo básicos.

Estas situações estão associadas ao que entendemos por ser pobre. Mas a pobreza afeta muitos aspectos no bem-estar das pessoas além da medida monetária do quanto se ganha ou gasta.

Um entendimento mais amplo do conceito de pobreza pode classificar famílias que tenham a mesma renda em níveis diferentes, dependendo do nível de acesso a serviços que elas têm. Uma família de quatro pessoas vivendo com um salário mínimo, que viva em um local com acesso à água encanada, sistema de esgoto, boas escolas e posto de saúde eficiente, pode ter mais qualidade de vida que outra família de mesmo tamanho, mas sem acesso a estes serviços. Conhecer a distribuição de renda da população dá alguma visão do nível de pobreza em que as pessoas vivem, mas não é suficiente para entender quão multifacetadas podem ser as privações.

No último dia 16, o Unicef publicou um relatório que analisa a pobreza multidimensional vivenciada por crianças e adolescentes no Brasil. A metodologia do estudo incorpora oito dimensões para medir a pobreza infantil: educação, acesso à informação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento, renda e segurança alimentar.

Utilizando dados da Pnad Contínua (IBGE), o estudo analisa o acesso das crianças e adolescentes a direitos básicos, classificando-os em sem privação, privação intermediária ou extrema. Considere crianças que vivem em domicílio com renda mensal de até R$ 209 por pessoa, sem água encanada ou acesso à internet e em situação de insegurança alimentar grave. Este seria um caso de privação extrema.

Os resultados descritos no relatório indicam que mais da metade da população brasileira até 17 anos (55,9%) vive em privação de algum direito. Ainda é muito, mas vem diminuindo: em 2017 eram 62,5%. A melhoria é proveniente, principalmente, das dimensões de renda e informação. Ou seja, diminuiu a proporção dessa população que vive em famílias com renda abaixo das linhas de pobreza monetária ou sem acesso à internet no último ano ou televisão em casa.

As privações extremas também diminuíram no período, com contribuições relevantes das dimensões renda, saneamento e moradia. Esta última dimensão indica que está caindo a quantidade de pessoas de até 17 anos que vivem em um quarto com mais de quatro pessoas ou em moradia cujas paredes e teto são de material inadequado.

Por outro lado, as dimensões de educação e segurança alimentar não apresentaram melhoras notáveis. O período analisado, que atravessa as consequências da pandemia de Covid-19, ainda deixa sequelas no bem-estar.

Atraso escolar, crianças não alfabetizadas na idade certa e em situação de insegurança alimentar ainda são uma realidade para milhões de brasileiros, com marcantes desigualdades raciais e regionais. Mesmo com avanços econômicos, combater a pobreza infantil exige reconhecer a complexidade das privações vividas por essas crianças, indo além de questões financeiras para garantir um futuro mais digno.


Priscilla Bacalhau – Doutora em economia, consultora de impacto social e pesquisadora do FGV EESP CLEAR, que auxilia os governos do Brasil e da África lusófona na agenda de monitoramento e avaliação de políticas

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