Poitier conta percalços a sua bisneta

Primeiro ator negro a ganhar um Oscar lança livro em que aborda lições aprendidas ao longo de seus 80 anos de vida
Astro de “Ao Mestre com Carinho” fala de sua infância pobre nas Bahamas e diz que deixa “mundo fraturado” como herança

O título em português da autobiografia de Sidney Poitier, “Uma Vida Muito Além das Expectativas”, pode soar pretensioso, mas ele tem mais a ver com sua infância do que com o que se deu na carreira do ator.

Ele nasceu prematuro de sete meses, com 1,4 kg, e longe de um hospital -o preconceito contra os negros era violento. Era 20 de fevereiro de 1927.
Sua mãe foi buscar alternativas para salvar a criança, enquanto seu pai saiu para encontrar uma caixa de sapatos para enterrar o filho. Sem esperanças médicas, a mãe visitou uma vidente para saber o que aconteceria ao bebê. Ela previu: “Ele crescerá e viajará por quase todos os cantos do mundo. Caminhará ao lado de reis. Será rico e famoso”. Acertou em tudo.

Então, aos 80 anos, extasiado por conhecer a primeira bisneta, Poitier resolve escrever sua terceira autobiografia, com esta e outras lições de vida.
Após a turbulência precoce, ele teve uma infância pobre e simples na pequena Cat Island, nas Bahamas. De lá, foi para Nassau, onde se viu no espelho pela primeira vez aos dez anos. Em seguida, nos EUA, tirou sua primeira fotografia aos 16 e leu seu primeiro livro, aos 20.
O dinheiro era contado. Muitas vezes faltava. Ingressou no Exército para fugir do frio e da fome. Depois trabalhou como lavador de pratos por anos, até ter seu destino desviado para uma seleção de atores.

Foi muito mal no teste, como era de esperar. Mas a dispensa pelo produtor só fez com que ele pusesse mais determinação em entrar no meio artístico.
“Aos 23 anos, eu dera início à lenta ascensão na carreira de ator e fizera meu primeiro filme, “O Ódio É Cego” [1950]”, conta na obra. Ganhou US$ 3.000. Com a “pequena fortuna”, voltou para a casa dos pais pela primeira vez em oito anos, quando sua mãe, sem notícias, pensava que ele tinha morrido.
“Essa é a minha vida. Quis que elas soubessem de tudo. Se tivessem 25 anos, poderia explicar. Mas não estarei lá. Fiz o livro porque não conheci meus bisavós, perdi a história de meus ancestrais. Não quis que isso acontecesse com elas.”

O relato não se detém em Hollywood. “Os filmes estão à disposição. Agora, quis mostrar a elas quem eu era”, explica.
Ao todo, fez mais de 50 filmes e, em 1963, foi o primeiro ator negro a ganhar um Oscar, por “Uma Voz nas Sombras”. Em 2002, levou mais uma estatueta pelo conjunto da obra.

“Foi o máximo [risos]. Filmes com negros não eram feitos. Mas havia quem visse a humanidade como uma família e não como senhores e escravos. Fui escolhido para o papel de um médico negro [em “O Ódio É Cego’]. Com isso, Joseph L. Mankiewicz inspirou pessoas pelo mundo. Tínhamos uma democracia segregacionista, que não permitia que os negros participassem da sociedade. Era um resíduo da escravidão.”

Contudo acha que a Terra “não está em sua melhor forma”. “Deixo de herança um mundo fraturado. A religião e nossa imperfeição abusam dos dias de hoje. O universo nos fez imperfeitos para nos impulsionar a buscar pelo melhor. Estamos melhorando, mas não tão rápido quanto eu gostaria.”
Poitier já tem um novo livro: “Mas não terá nada da minha vida”. Entregou os manuscritos de um romance de ficção científica. “Deve ser minha última empreitada literária. Será sobre como vejo a galáxia. Não temos para onde ir, mas podemos tentar. Assim evoluímos. Não venceremos. Se nascemos, vamos morrer. Mas é um momento ótimo para estar vivo.”


 

Estou com 82 anos. Provavelmente não vou estar aqui quando [minhas bisnetas] fizerem 15 anos. Quis deixar minha visão do mundo. É um assunto pesado para crianças, mas, daqui a dez anos, poderão saber e sentir o que era a minha vida
SIDNEY POITIER

 

 

Ator abriu as portas para artistas negros

A cena mais marcante da carreira de Sidney Poitier acontece em “No Calor da Noite” (1967), de Norman Jewison.
Interpretando um policial chamado Virgil Tibbs, Poitier interroga um poderoso senhor de terras do Mississippi, Eric Endicott (Larry Gates) sobre um assassinato. O racista Endicott, sentindo-se humilhado, dá um tapa na cara de Tibbs.
A reação é imediata: Tibbs devolve o tabefe, mais forte ainda. “Aquele tapa valeu por mil marchas contra o racismo”, disse, quase 30 anos mais tarde, Rod Steiger, que levou Oscar de melhor ator pelo filme. “Foi um choque. Ninguém havia visto uma cena daquelas no cinema.” O curioso é que o revide não estava no roteiro e só foi incluído por exigência de Poitier.
No meio do caos social e dos conflitos raciais que sacudiam a América no fim dos anos 60, o tapa de Tibbs ecoou forte e fez de Poitier um ícone do movimento negro. Ali estava um sujeito fino e elegante, mas que não levava desaforo para casa.
Primeiro ator negro a ganhar um Oscar (por “Uma Voz nas Sombras”, 1963), Poitier abriu as portas de Hollywood para um sem número de atores negros. Sua influência é enorme e sua carreira, brilhante, como atestam “Ao Mestre com Carinho” (1967), “Adivinhe quem vem para Jantar” (1967) e tantos outros ótimos filmes.

 

 


UMA VIDA MUITO ALÉM DAS EXPECTATIVAS

Autor: Sidney Poitier
Tradução: Catharina Pinheiro
Editora: Larousse
Quanto: R$ 44,90 (304 págs.)

Fonte: Folha de São Paulo

+ sobre o tema

Sakamoto: Depois de muito tempo, este blog desce do pedestal e responde a um leitor

por Leonardo Sakamoto Detesto fazer o que chamo...

TIRIRICA E SARNEY

Por: Luis Fernando Veríssimo Richard Nixon certa vez...

Juízes lançam nota de repúdio à Condução Coercitiva de Lula

Juízes divulgam nota em que afirmam que não se...

para lembrar

Votos dos imigrantes latinos na Flórida podem ser decisivos para eleição

Lucas Rodrigues* Miami, Flórida - A cidade de Miami, na...

Avaliação positiva do governo Lula bate recorde e chega a 75%

Por: YGOR SALLES A avaliação positiva do governo do...

Michelle Obama: “Os homens de minha vida não falam assim sobre as mulheres”

Há emoção nos comícios de Michelle Obama a favor...

Fim da saída temporária apenas favorece facções

Relatado por Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o Senado Federal aprovou projeto de lei que põe fim à saída temporária de presos em datas comemorativas. O líder do governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA),...

Morre o político Luiz Alberto, sem ver o PT priorizar o combate ao racismo

Morreu na manhã desta quarta (13) o ex-deputado federal Luiz Alberto (PT-BA), 70. Ele teve um infarto. Passou mal na madrugada e chegou a ser...

Equidade só na rampa

Quando o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, perguntou "quem indica o procurador-geral da República? (...) O povo, através do seu...
-+=