Política cultural sem racismo

Após a divulgação de uma carta aberta, escrita por atores do Grupo dos Dez, reivindicando representatividade negra no Festival Internacional de Teatro Palco e Rua (FIT), ativistas e entidades públicas debatem, no dia 17, as perspectivas para a construção de políticas para as artes e culturas negras. Marcos será um dos debatedores e antecipa algumas reflexões para oMagazine.

Por Joyce Athie Do O Tempo

Frequentemente, o racismo tem sido apontado em algumas iniciativas culturais como o Oscar, a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, e, agora, o Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte – FIT, que não refletiu na programação o trabalho de artistas negros, como tem sido questionado. O assunto reaparece e morre logo em seguida para depois surgir novamente. O que é que acontece que a questão negra é refletida, amplamente, apenas em situações pontuais?

Bem, a sociedade brasileira é profundamente constituída pelo racismo que está no dia a dia, em nossas atividades cotidianas, como se fosse natural, então, é tratado de forma banalizada. Quando as pessoas começam a dar conta da sua invisibilidade, da forma como são tratadas, nas relações de trabalho, na educação, nos meios de comunicação e, sobretudo, no campo da cultura, elas vão fazer algo por isso. E quando os negros reivindicam seus direitos, as pessoas se assuntam e a questão só aparece quando resolvemos denunciar e botar a boca no trombone. Aí, ela vem de uma forma explosiva, mas estamos falando de algo antigo que o movimento negro vem discutindo há muito tempo. Somos uma sociedade racista que não admite ser racista e isso incomoda. Por isso, o debate sobre o racismo ganha esse boom e some, mas ele é cotidiano e também estamos refletindo sobre essas questões cotidianamente. Um segundo aspecto é que nossa sociedade se espelha em outros sistemas, como o eurocêntrico. Mas, quando o debate avança, as pessoas e os grupos sociais começam também a ter outras referências, menos monoculturais. Essa diversidade de povos que constituem nossa cultura, que é a marca da identidade brasileira, acaba sendo invisibilizada porque estamos olhando para outros modelos. E aí, chegamos ao racismo e à desvalorização dos negros e sua cultura.

Embora seja nítida a importância de iniciativas voltadas com exclusividade para a cultura negra, como o FAN – Festival de Arte Negra, quais os riscos de uma espécie de “guetificação”, sem, por exemplo, o diálogo com outras iniciativas, como o FIT?

A questão do FIT reflete nossa sociedade, a admiração por modelos eurocêntricos e o racismo socialmente estruturado. Mas a cultura não pode ficar no gueto, o ator negro não pode ser só lembrado apenas para papéis específicos e estereotipados. É nossa responsabilidade chamar a atenção das instituições que são responsáveis pelos mecanismos de produção e gestão das políticas públicas. Por isso, as pessoas reivindicam cotas, para que não sejamos lembrados apenas na realização de um evento. Se comparar o processo de realização destes dois festivais, a gente vê que eles têm tratamentos diferenciados do ponto de vista de tempo de produção e duração, de recursos e das próprias resistências que são encontradas para a sua realização. Tanto o FAN quanto o FIT são projetos importantes para a cidade e eles acontecem apenas bienalmente. Não podemos ficar esperando dois anos para dar visibilidade à produção criativa desses segmentos culturais. Nós fazemos cultura todo dia e precisamos que isso não seja relegado a um momento, a um calendário. É necessário que os segmentos sejam representados em todos os ambientes. Os festivais são apenas um coroamento de um processo, não são a única forma de participação e representatividade na cidade.

Falando das datas, em novembro vimos diversos centros culturais com programação que valorizava a cultura negra. Mas, depois disso, os festivais e os centros culturais se esvaziaram de artistas negros. O que, de fato, representam essas comemorações, como o 13 de maio que acabamos de relembrar?

As datas são fundamentais para celebrar nossas conquistas e para a produção da memória. Nossa história é muito mal contada e precisamos registrar, escrever, fotografar e narrar nossa trajetória, nossa cultura. Mas essas datas não dão conta da nossa complexidade. Por mais que você escreva e ressignifique o dia da morte de Zumbi para ao mês da consciência negra, isso não esgota nossas lutas. A mesma coisa acontece com a questão indígena, por exemplo. Não podemos reduzir as questões dos índios ao dia 19 de abril. Pela complexidade do que é o racismo, precisamos de ações para o ano inteiro em todas as áreas da atividade humana até termos uma sociedade baseada na igualdade.

Uma das pautas do debate que você participará na próxima terça-feira toca na efetivação de políticas públicas para as artes e as culturas negras. Como pensar e atuar, agora, frente ao fim dos ministérios da Cultura e da Igualdade Racial? Como a pauta é atingida?

É um profundo retrocesso e isso reflete a maneira como a elite brasileira vê esses segmentos sociais e esses temas. Mas acho que, nessa semana, haverá muita resistência, manifestação. É difícil pensar como seremos atingidos, porque esse é um debate que vai ganhar agenda daqui pra frente. A população negra tem 500 anos de resistência no país, avançamos, do ponto de vista institucional, na construção de políticas públicas, e não vamos permitir esse retrocesso. Esse retrocesso faz pensar essa mentalidade escravocrata da elite política brasileira. Mas o processo de resistência continua, agora com mais intensidade porque essa situação vai nos exigir esforços maiores. O esforço é de articulação do movimento negro, da classe cultural, das mulheres, dos indígenas. O processo de manifestação e resistência vai se dar. Não tenho dúvidas.

Partindo para a ação e pensando a produção e gestão de espaços culturais, festivais etc, como avançar para evitar a invisibilidade dos artistas e da cultura negra?

Há diversas formas de lutar, diversas iniciativas. Mas acredito que a primeira coisa é pensar a política e o debate político em torno da afirmação dessa cultura e da necessidade de discussão do racismo. Não vejo outra maneira de romper isso sem a reflexão e a participação democrática. A partir disso, é se estruturar políticas públicas. De forma prática, uma segunda questão é entrar no processo de organização dessas iniciativas e desses espaços de pensamento e decisão, o que é desafiador. É importante que tenhamos participação na elaboração dos editais, na concepção de programas e projetos, na curadoria e na produção dos eventos, para que não sejamos apenas convidados de algumas atividades em determinadas datas. Além disso, precisamos também de uma educação política para a cultura que reflita a diversidade e as diferenças. Isso é fundamental para a construção de políticas. E aí, aliado a isso, precisamos de visibilidade, ponto em que a mídia tem papel importante para destacar os processos criativos do segmento cultural negro.

Diálogos

O debate “Perspectivas para a Construção de Políticas para as Artes e Culturas Negras” acontece no dia 17, às 18h30, no Galpão Cine Horto (r. Pitangui, 3.613, Horto). Além de Marcos Cardoso, o encontro terá a participação de Leda Maria Martins (pesquisadora da UFMG), Sidney Santiago (diretor do grupo teatral Os Crespos, de São Paulo), de representantes da Secretaria de Cultura, da Secretaria de Direitos Humanos e da Fundação Municipal de Cultura, com a mediação de Bia Nogueira, atriz do Grupo dos Dez.

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