por Marco Antonio Chagas Guimarães (*)
O Brasil é um país pluri-étnico que tem em torno de 52% de sua população constituída de negros (pretos e pardos), sendo o segundo país no mundo em população negra, seguido da Nigéria, país africano. Desde o governo Fernando Henrique Cardoso, o Estado reconheceu que existe racismo no Brasil, mas a “herança do período escravocrata existente no imaginário brasileiro faz com que o racismo e a discriminação racial estejam profundamente enraizados na cultura e nas dinâmicas socais do nosso país” (Quintiliano e Lopes, 2007, p.1). Estatísticas oficiais evidenciam que o racismo é um dos determinantes das condições de saúde, o que resulta em altas taxas de morbidade e mortalidade da população negra e na existência de desigualdades e iniqüidades que impedem o acesso a direitos à metade da população brasileira.
No imaginário de nossa “democracia racial” ser negro é, por exemplo, ser feio, sujo, ter pouca inteligência. As positividades negras são, em geral, pensadas/sentidas em termos idealizados e/ou folclorizados, relacionado-as, ao samba, ao futebol, à destreza sexual, à resistência para o esforço no trabalho, ou resistência à dor. Ainda hoje, a literatura chama de banzo, numa forma romântico-folclorizada, o que sabemos ter sido depressão, conseqüência do sofrimento psíquico de pessoas negras durante o período escravocrata.
Na prática o produto final desse imaginário promove o travamento de portas em bancos, o acompanhamento – com o olhar e com a presença acintosa – a pessoas negras em shoppings e supermercados, promove a procura e o encontro de balas perdidas em corpos de sujeitos psíquicos que têm, em sua grande maioria, uma determinada cor. Sabemos também que a repercussão dessas vivências leva ao trabalho de baixa remuneração, desigualdades em educação e iniquidades em saúde, só para citar algumas formas de não garantia de direitos humanos.
A clínica de pacientes negros tem mostrado que as repercussões psíquicas dessas vivências, em um meio ambiente nada bom o suficiente, são humilhação social, baixa estima, timidez excessiva, irritabilidade, ansiedade intensa, estados fóbicos, hipertensão, depressão, obesidade, agressividade intra ou intersubjetiva, uso de álcool ou outras drogas, entre outros.
Neste dia 20 de novembro, dia em que se propõe uma reflexão à consciência, de negros e brancos, sobre as questões raciais brasileiras, por intermédio da figura de um representante da resiliência negra no Brasil, Zumbi dos Palmares, é importante que a psicanálise e nós, psicanalistas, possamos refletir em nossas interioridades, em nossos corações, sobre o tema “racismo e sofrimento psíquico” lembrando que a história da população negra no Brasil, assim como de sua subjetividade, é construída a partir de um processo político, econômico e ideológico que promove vulnerabilidades e iniqüidades no acesso aos direitos humanos.
O Premio Nobel da Paz de 1986, Elie Wiesel, sobrevivente de campos de concentração nazistas, numa entrevista concedida a revista Veja, em 2009, lembra-nos que o holocausto não pode ser negado “porque dói. Dói nos sobreviventes, nos seus filhos e nos filhos de seus filhos. Quem nega o holocausto pela dor que inflige aos sobreviventes e seus descendentes, comete mais do que apenas pecado (alienação). É uma crueldade”. Como muito bem aprendemos com a população judaica, é preciso “não esquecer para não repetir jamais”.
Minha contribuição busca propor que as pessoas presentes neste Encontro da Federação Brasileira de Psicanálise – Febrapsi possam acolher em suas interioridades, para posterior reflexão, a ideia de que o racismo é estruturante de nossas relações sociais e que as subjetividades que somos todos e, todos nós psicanalistas e profissionais de saúde mental, são construídas no interior destas relações. A ideia do quanto esse elemento fala, ou não, em nós, quando somos agentes de saúde, na escuta psicanalítica ou no trabalho em saúde mental. Meu desejo com esta contribuição é também buscar, além do direito à saúde, uma consciência mais ampla das relações sociais e de direitos humanos entre os brasileiros. Neste sentido, associo-me ao desejo expresso na fala de Sueli Carneiro, quando ela diz que “A utopia que hoje perseguimos consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemônica, que anula a diversidade. Ser negro sem somente ser negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra. Alcançar a igualdade de direitos é converter-se em um ser humano pleno e cheio de possibilidades e oportunidades para além de sua condição de raça e gênero. Esse é o sentido final dessa luta” (Carneiro, 2003, p.57).
Referência Bibliográfica
CARNEIRO, S. – Enegrecer o Feminino: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma Perspectiva de Gênero – in- ASHOKA Empreendedores Sociais e Takano Engenharia (org.) – Racismos Contemporâneos. Takano, Rio de Janeiro, 2003.
QUINTILIANO, L., LOPES, F. – Combate ao Racismo Institucional, DIFID – Ministério do Governo Britânico para o Desenvolvimento Internacional, Brasília, 2007.
(*) – Doutor em psicologia clínica (PUC-Rio), psicólogo, psicanalista, integrante do Grupo Psicossomática Psicanalítica Oriaperê (RJ), integrante da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (núcleo RJ).
Fonte: SBPRJ