Por que é equívoco pensar que a Lei do Feminicídio é solução para violência fatal contra as mulheres

Número alto de feminicídios no Brasil escancara negligência do Estado no combate à violência contra a mulher, apontam especialistas.

Por Ana Ignacio, do Huffpost

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“Não me diga ‘feliz dia’. Lute comigo”, pede placa de manifestante em Curitiba, quando do dia 8 de março de 2019, Dia Internacional da Mulher.

Na semana passada, o Rio de Janeiro chegou a registrar quatro casos de feminicídio em 48 horas. Adriana Valéria, de 33 anos, foi morta pelo namorado no dia em que fazia aniversário. Jéssica da Silva Salles, de 31, foi morta ao buscar pertences na casa do ex-namorado. Sirlene Ferreira de Lacerda, de 38, foi assassinada pelo ex-namorado com um tiro na cabeça.

Os casos são recorrentes e o dado não é novo: a cada cinco dias, no estado do Rio de Janeiro, uma mulher é assassinada pelo simples fato de ser mulher, segundo o Dossiê Mulher, estudo feito anualmente pelo Instituto de Segurança Pública (ISP). Já em termos de País, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídios, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas pra os Direitos Humanos (ACNUDH). O país só perde para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres.

A Lei do Feminicídio no Brasil pode até ser considerada relativamente nova, mas a discussão e o debate sobre o tema certamente não são. Assim como este 25 de novembro também não é. Instituído pela ONU há dez anos como dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher, a data lembra um crime ocorrido em 1960, quando as irmãs Minerva, Patria e Maria Teresa Mirabal, conhecidas como “Las Mariposas”, foram mortas a mando do regime do presidente da República Dominicana, Rafael Trujillo.

No entanto, mesmo após tantos anos de ativismo e conquistas, ainda há muito a ser discutido quando o assunto é o combate à violência contra a mulher e aplicação da Lei do Feminicídio. No Brasil, atualmente, parte central do debate gira em torno da criação e, principalmente, implementação de boas políticas públicas na área e a valorização da discussão de gênero em diversas esferas da sociedade, de acordo com especialistas ouvidas pelo HuffPost Brasil.

O feminicídio é o ápice da violência contra a mulher, então é essencial essa compreensão de que ele não é um crime passional.
Nalida Coelho Monte, defensora pública do estado de São Paulo, coordenadora auxiliar do Núcleo de Defesa e Promoção dos Direitos das Mulheres

Sancionada em 2015, a Lei do Feminicídio ― que transforma em crime hediondo o assassinato de mulheres pelo fato de ser do sexo feminino ― é considerada algo novo e, por isso, ainda não é aplicada em sua totalidade e também não é totalmente compreendida pelo governo e pelo Judiciário.

“O feminicídio é o ápice da violência contra a mulher, então é essencial essa compreensão de que ele não é um crime passional, portanto, não é fruto de uma circunstância isolada. Mas ele tem razão ou causa estruturada que reside na desigualdade de gênero e na omissão do Estado em relação a isso”, avalia Nalida Coelho Monte,defensora pública do estado de São Paulo, coordenadora auxiliar do Núcleo de Defesa e Promoção dos Direitos das Mulheres.

“Este crime pode ser entendido como a morte de mulheres por serem mulheres; é um crime de ódio que ocorre em situações em que há desprezo ou menosprezo à condição da mulher. Acho que um dos principais desafios é que todos consigam perceber que existe uma vinculação entre a discriminação contra a mulher e a violência contra a mulher (…) e o termo tem uma função política fundamental. Traz em si a ideia de que as mulheres morrem por serem mulheres, portanto reflete a falha do Estado em políticas para combater a desigualdade de gênero, já que são mortes evitáveis”, completa a defensora.

E, segundo a ONU, em comparação com países desenvolvidos, no Brasil se mata 48 vezes mais mulheres que o Reino Unido, 24 vezes mais que na Dinamarca e 16 vezes mais que no Japão ou Escócia.

Dados divulgados no ano passado pela Artigo 19, ONG de direitos humanos que atua na área há mais de 30 anos, indicam que no Brasil “entre 1980 e 2013, 106.093 pessoas morreram por serem mulheres. O Dossiê Feminicídio destaca que no ano de 2010 se registravam cinco espancamentos a cada dois minutos, em 2013 já se observava um feminicídio a cada 90 minutos e, em 2015, ano em que a lei foi sancionada, o serviço de denúncia Ligue 180 registrou 179 relatos por dia”.

Os números citados acima, no entanto, não podem ser considerados como um grande reflexo da realidade.

“É importante saber que ainda não temos no País boas pesquisas que nos permitam conhecer como vem sendo aplicada [a Lei do Feminicídio] no sentido de que não temos bons números a partir dos registros policiais e, o mais importante, é que não temos pesquisas a partir dos processos para que a gente possa compreender qual o argumento que está sendo formulado na classificação dos crimes como feminicídio”, diz Wania Pasinato, socióloga especializada em gênero e enfrentamento à violência contra a mulher.

Apesar dos 13 anos da existência da Lei Maria da Penha e de quatro da Lei do Feminicídio, é crescente o número de mulheres assassinadas no País.

Segundo o Atlas da Violência de 2019, 4.963 brasileiras foram mortas em 2017, considerado o maior registro em dez anos. Na década, a taxa de assassinato de mulheres negras cresceu quase 30%, enquanto a de mulheres não negras subiu 4,5%. Entre 2012 e 2017, aumentou 28,7% o número de assassinatos de mulheres na própria residência por arma de fogo.

“Ainda há muito a melhorar na aplicação para que a lei seja estendida também a situações de homicídios de mulheres que ocorrem fora das relações conjugais, pelas mãos de outros agentes, também em razão do gênero”, completa Pasinato.

A Defensoria Pública de São Paulo, por meio do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), disponibiliza cartilhas com orientações de atendimento à mulher vítima de violência, de como ela pode pedir ajuda e sair do ciclo de violência, além de endereços de delegacias especializadas.

Importância de tipificar a violência

Pode parecer algo meramente técnico e jurídico, já que quando classificado como feminicídio, a pena do autor do crime é aumentada podendo chegar a 30 anos de prisão – enquanto em outros casos de homicídio simples a pena máxima fica em 20, – mas não é apenas isso. Vale lembrar também que especialistas da área não consideram que leis como essas são responsáveis por reduzir o número de casos, mas sim contribuir para a criação de políticas públicas para lidar com a raiz do problema.

“A importância que vejo quando você dá um nome específico para violência de gênero, muito embora o termo gênero não tenha entrado na tipificação do feminicídio ― o que é um problema ― mas acho que o grande ponto positivo é você visualizar um tipo específico de violência e ao fazer isso propor novas políticas para a sua prevenção”, explica Maíra Zapater, advogada especialista em direito penal e doutora em direitos humanos.

“Tipificar não é importante em relação às punições como por vezes se pensa, e às vezes surgem argumentos no sentido de ‘poxa, mas os feminicídios têm aumentado ou continuam muito altos mesmo depois da lei?’ Isso é um ponto que temos insistido desde 2015. Vender [a Lei do] Feminicídio como sendo uma solução para violência fatal para as mulheres é um equívoco. A gente só aplica a lei penal depois que o crime já aconteceu, então não vai servir para prevenir”, defende Maíra.

Vender a Lei do Feminicídio como uma solução para violência fatal para as mulheres é um equívoco.
Maíra Zapater, advogada especialista em direito penal e doutora em direitos humanos.

No entanto, segundo a especialista, categorizar uma violência desse tipo cria registros específicos o que pode, ao menos em tese, gerar dados para ajudar no trabalho de prevenção de fato.

“Aqui no Brasil foi estabelecido um protocolo específico de investigação e essa sim é a grande contribuição. Então, quando chega à delegacia a notícia de um crime fatal contra uma mulher, existe um protocolo que as delegacias devem em tese seguir para fazer aquela investigação e verificar se ali foi um crime de feminicídio ou não, o perfil da vítima, perfil do autor do fato, as circunstâncias em que aquilo se deu e começar com isso a produzir dados sistematizados que permitam elaborar diagnósticos e com isso propor soluções”, explica a advogada.

Em abril de 2006, a ONU Mulheres, a antiga Secretaria de Política para as Mulheres do Governo Federal, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, com o apoio da Embaixada da Áustria, publicaram documento intitulado Diretrizes Nacionais Feminicídio – investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres.

O documento se baseia em algumas premissas, dentre as quais se destaca a disposição para mudar o olhar sobre o crime, desde o primeiro profissional acionado para comparecer ao local dos fatos. Isso significa que desde o momento inicial, o agente público deve questionar internamente se aquela morte ocorreria daquela forma, naquele determinado contexto, caso a vítima não fosse mulher.

Outra premissa contemplada nas diretrizes está relacionada à linguagem empregada desde o momento da notícia da morte até o julgamento do caso, passando pela forma como a situação é reportada por agentes públicos à imprensa e à sociedade. Essa linguagem não pode ser reprodutora da violência, culpabilizando a mulher ou acompanhada de estereótipos de gênero. As diretrizes também destacam a importância de reconhecer e promover os direitos das vítimas sobreviventes e indiretas, os dependentes e familiares, assim como a adoção de medidas de preservação e reparação da memória das pessoas.

A socióloga Wania Pasinato destaca também a relevância da tipificação para pensar em prevenção no futuro. “A importância de nomear essa violência e esses homicídios como feminicídio é justamente poder demonstrar que essa violência tem como causa principal essa desigualdade de poder na sociedade. Então, nomear os homicídios contra as mulheres têm o propósito de jogar luz sobre essa causa, sobre essa desigualdade sobre a qual temos que lutar, temos que combater por meio de políticas públicas, e principalmente políticas preventivas, que atuem na área da educação”

Feminicídio nos júris

Com as novas discussões sobre o tema e as novas leis – a do Feminicídio e, anterior a essa, a Lei Maria da Penha – diversos casos de homicídio e tentativa de homicídio contra a mulher passaram a serem tratados de outra forma. Antes disso, por muito tempo, autores de crimes contra suas companheiras ou ex-companheiras eram vistos como “vítimas” de forte emoção e até mesmo movidos por amor para matar.

O caso de Ângela Diniz é um exemplo. A socialite foi morta a tiros pelo então companheiro Raul “Doca” Fernandes do Amaral Street na década de 1970. “[Na época], foi acatada a tese de legítima defesa contra a honra. Construiu-se no júri a imagem de uma mulher sedutora, insaciável do ponto de vista sexual e a imagem de um homem frágil, seduzido e impelido pela emoção e paixão. Decidiu-se que era possível que ele matasse para proteger a sua honra”, conta a defensora Nalida.

Condenado a dois anos de prisão, após intensa campanha do movimento feminista com o slogan “quem ama não mata”, Doca foi a novo julgamento e condenado a 15 anos de cadeia. No entanto, casos do tipo ainda são realidade. “Anos depois, o caso da estudante Eloá [em 2008, a jovem de 15 anos foi morta pelo ex-namorado após ser mantida presa por ele em seu apartamento] ainda foi retratado em diversos meios do mesmo modo. O cárcere privado foi romantizado e visto como uma prova de amor”, resalta a especialista.

Mas, aos poucos, é possível ver mudanças. Manuel Castanheiras, advogado que atuou no caso de Bárbara Penna, sobrevivente de uma tentativa de feminicídio em 2013 – o autor do crime foi a júri em setembro deste ano e foi condenado a 28 anos e quatro meses de prisão – vê evolução na área.

Em 7 de novembro de 2013, Bárbara, então com 19 anos, sofreu uma tentativa de feminicídio dentro de sua própria casa, em Porto Alegre (RS). Naquela noite, seu ex-companheiro colocou fogo no apartamento em que a jovem morava e depois a jogou da janela do prédio. Os dois filhos pequenos do casal morreram no incêndio, assim como um vizinho de 79 anos, que tentou ajudar.

“Esse júri se tornou emblemático. O crime em relação a Bárbara figurou como uma tentativa de homicídio e não tinha essa peculiaridade [do feminicídio] que acaba agravando a situação do réu. Em relação aos julgamentos sociais que até então ocorriam [de colocar a mulher como responsável pelo crime de alguma forma], acho que esse caso da Bárbara foi um desses que auxiliou para que houvesse sim uma alteração legislativa e, inclusive, auxiliou para que houvesse uma ‘desestigmatização’ trazendo realmente à tona de que as mulheres nesses casos são vítimas sim”.

Mudar essa visão nos julgamentos desse tipo de crime é essencial para diminuir preconceitos e alterar a realidade de violência contra as mulheres. “Tem que deixar claro a necessidade de superação desses estereótipos de gênero e de que isso é essencial para que a mulher vítima tenha um verdadeiro acesso à justiça. Já os operadores do direito, incluindo os advogados de defesa, é essencial ficar claro que a exploração desses estereótipos e a tentativa de manchar a reputação da vítima é violadora de direitos humanos e todos os advogados têm essa função de promoção e respeito dos direitos humanos”, aponta Nalida.

Desafios e pautas para o futuro

Além da importância da criação de políticas públicas no setor, as especialistas defendem também a necessidade de discutir gênero na sociedade.

“Temos que manter em pauta também temas do debate como gênero, a importância de falar nisso, explicar o que é esse conceito, mostrar como ele é importante para que a gente possa compreender essa desigualdade social que acaba se refletindo em violência contra as mulheres, que é a expressão mais dramática disso”, diz Wania Pasinato.

Como a raiz do problema é também cultural, é necessário ainda desconstruir alguns padrões e comportamentos sociais.

“Acho que é importante desfazer um equívoco de que às vezes quando estamos falando de violência contra a mulher, ainda há quem questione por que estamos falando de violência contra as mulheres se os homens morrem mais de homicídio”, explica Maíra Zapater. “E isso é verdade. Numericamente, os homens estão mais à frente em relação a violência, mas aqui são dois pontos. Primeiro que quando a gente fala de combate a violência contra a mulher, a gente não está dizendo que as mulheres sofrem mais violência, a gente está dizendo que sofrem violências diferentes e [é importante] se perguntar por que mulheres e homens sofrem violências diferentes, porque mulheres sofrem violências na maioria das vezes nas suas casas e os homens na rua”, aponta.

“O segundo ponto acho que é importante acrescentar que várias das violências sofridas pelos homens guardam também um componente de gênero muito importante relacionado com a ideia de masculinidade tóxica. Então não deixam de ser também dimensões da violência que tem o gênero como raiz. Assim, falar de violência contra a mulher é falar de violência contra as pessoas e as especificidades de violência que sofrem mulheres e homens”, finaliza.

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