Há cinco anos, a escritora Maryse Condé ganhou um prêmio que, apesar da repercussão mundial, foi extremamente singular —tão excepcional que a entidade que o concedeu se dissolveu logo depois.
Era o chamado “Nobel alternativo”, escolhido por uma instituição ad hoc que se reivindicava “The New Academy” e era composta por membros da sociedade civil —bibliotecários, críticos literários e um amplo júri popular. Surgiu no ano em que o Nobel de Literatura oficial não foi entregue, devido a escândalos de desvio de conduta, e depois se dissipou.
No discurso de agradecimento, Condé se disse envolta num “fogo furioso” de afeto, não só de seu círculo próximo, mas de uma multidão de leitores anônimos. “Foi uma experiência que nunca senti antes”, disse.
O prêmio soa adequado, em particular, para coroar essa carreira específica. Não só porque reconheceu tardiamente um talento inegável —mas porque o fez à revelia das tradições, florescendo de uma rachadura quase subversiva no cânone.
Subversão esta que, segundo Condé, está se sedimentando em norma. Depois desse episódio, um homem negro africano e três mulheres foram tarimbados com o Nobel. “Realmente acho que chegamos a um momento no tempo em que há mais respeito pelas diferenças e minorias”, diz a escritora.
Os brasileiros têm uma oportunidade de ouro, agora, para conhecer a obra da autora. Pouco depois do Nobel alternativo, o selo feminista Rosa dos Tempos, da Record, publicou o livro mais famoso de Condé, “Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salem”, um romance histórico em que gritam as tintas da identidade afro-caribenha da mulher que o escreveu.
A mesma editora agora traz “O Evangelho do Novo Mundo”, o livro mais recente da escritora de 85 anos, e a Bazar do Tempo contribui com “O Coração que Chora e que Ri”, coleção das memórias de Condé crescendo em sua Guadalupe natal —uma pequena região que, como a escritora já brincou, “só é mencionada quando tem um furacão”, mas é dotada de uma “cultura maravilhosa fabricada de várias influências”.
É algo que se vê de forma cristalina nas histórias depuradas das lembranças da autora, dos festejos de Carnaval na cidade de La Pointe a um velório em que obrigam a pequena Maryse a beijar o cadáver de sua babá. São sensíveis, nesta literatura, as cores e sons de uma ilha com cheiro de açúcar e canela, como dizia um poema que ela recitava na escola.
Tudo narrado sob o olhar mordaz de uma menina que desconfiava que seus pais eram alienados, por seu deslumbramento com Paris, e que não se preocupava demais que suas palavras machucassem os outros —numa das histórias mais divertidas do livro, cria uma barafunda com sua melhor amiga ao escrever em uma redação que ela não era bonita nem inteligente.
“Quando eu era menina, minha família me apelidou de ‘a pequena mentirosa’”, diz a escritora. “Meus amigos e familiares próximos às vezes acham que são os alvos de meus romances, mas para uma escritora isso não é um problema, porque é tudo pura invenção. Escrever não é fofocar.”
Falar a verdade é uma questão complexa para todo autor, completa ela, já que todos sem exceção combinam o imaginário com a realidade. Veja o outro livro que está sendo lançado, “O Evangelho do Novo Mundo”, com um protagonista de evidente inspiração bíblica, o presumido messias negro Pascal, numa trama contada entre o cômico e o suntuoso.
“Minha mãe era uma católica devota e meu pai, um ateu que caçoava das crenças dela. Isso afetou minha escrita, sempre estive dividida entre o deboche, o humor e o respeito. A Bíblia, para mim, é uma sucessão de histórias bonitas, às vezes divertidas, não só um texto religioso.”
É nessa obra que surge também o Brasil, entre a verdade e a ficção —uma figura mítica central à narrativa mora em uma cidade inventada chamada Asunción. O país também aparece na obra memorialística quando a autora, já crescida e estudando na França, se vê às voltas com um curso sobre Luís Carlos Prestes.
Apesar de lamentar nunca ter visitado terras brasileiras, ela conta agora que se apaixonou, na juventude, pelo irmão de uma amiga —ele morava no país e ela vivia ouvindo suas histórias. “Mais tarde, li o ‘Manifesto Antropófago’ de Oswald de Andrade, que inventou a noção de canibalismo literário e foi uma grande influência para mim.”
Lívia Vianna, editora-executiva da Rosa dos Tempos, afirma que é incompreensível que tenha demorado tanto para Condé ser publicada por aqui —”Tituba”, sua estreia no país, saiu 33 anos depois da publicação original. Ela afirma que o editou para “preencher um vazio no mercado”.
“O lançamento do primeiro livro dela no Brasil foi um estouro, por vários motivos. Um deles é que Maryse Condé tem tudo a ver com a gente. Desde a questão da colonização, da religiosidade, tudo nos leva a ela.”
Agora, para compensar, Vianna prepara uma chuva de Condé. Mais cinco livros da autora já estão contratados pela editora, o próximo sendo “O Fabuloso Destino de Ivan e Ivana” sempre com tradução da escritora Natalia Borges Polesso.
A Bazar também não perdeu tempo e lança ainda neste ano “A Migração dos Corações”, um de seus títulos mais populares, definido pela própria autora como uma versão antilhana de “O Morro dos Ventos Uivantes”.
Segundo Ana Cecilia Impellizieri Martins, dona da editora, Condé é a maior expoente feminina de uma geração de autores caribenhos que enriquecem o olhar sobre raça e colonialismo.
“Condé se descobre negra quando vai a Paris”, afirma ela. “Ela forja sua personalidade contestatória por sentir, diferentemente de seus pais, os malefícios da colonização. Para o público brasileiro, esses debates estão muito presentes.”
Quando a escritora ganhou o Nobel alternativo, disse que esperava que o prêmio fizesse a voz dos guadalupenses começar a ser ouvida —que aquele pequeno arquipélago enfim elaborasse uma identidade nacional verdadeira. Tudo sugere que, ao ouvir essa voz, o Brasil também entenda melhor a sua.
O CORAÇÃO QUE CHORA E QUE RI
- Preço R$ 62 (184 págs.)
- Autor Maryse Condé
- Editora Bazar do Tempo
- Tradução Heloisa Moreira
O EVANGELHO DO NOVO MUNDO
- Preço R$ 64,90 (294 págs.)
- Autor Maryse Condé
- Editora Rosa dos Tempos
- Tradução Natalia Borges Poles