Por que o ‘blackface’ é uma forma de racismo

Maquiagem usada pelo primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, surgiu durante a escravidão nos Estados Unidos para ridicularizar negros

Por André Duchiade, Do O Globo

Foto em preto e branco do primeiro ministro do Canadá - homem branco realizando Blackface- rodeado por quatro mulheres
O primeiro-ministro do Canadá Justin Trudeau com maquiagem ‘brownface’ em uma festa em 2001 Foto: HO / AFP

Em menos de 12 horas, vieram a público duas fotos e um vídeo do primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, com o rosto pintado de marrom e de preto, produzidos entre a sua adolescência, no começo da década de 1990, e 2001.

O premier, que concorre à reeleição no mês que vem e construiu sua imagem pública como um político pró-diversidade, admitiu que as práticas, conhecidas pelas expressões em inglês “brownface” e “blackface”, são racistas, e pediu “perdão”, afirmando que, “por vir de um lugar privilegiado”, tinha então “um ponto cego” sobre o próprio preconceito.

O uso da maquiagem com a intenção de caricaturizar pessoas negras e de outras minorias raciais é um comportamento racista e ofensivo, que humilha, deprecia e ridiculariza negros, afirmam especialistas no estudo da História das relações raciais.

A origem da prática, que, em menor intensidade do que nos Estados Unidos, também aconteceu no Brasil, vincula-se à escravidão, e, embora sempre tenha sido vista por pessoas negras como racista, só passou a ser percebida como muito preconceituosa também pela maioria dos brancos a partir do movimento dos direitos civis na década de 1960, segundo os historiadores do tema.

— Essa foi uma das práticas que ajudaram a criar uma imagem da população negra que não só a caracterizava esteticamente de forma não bela como a ligava a práticas criminosas, numa lógica que, infelizmente, se perpetua até os dias de hoje — afirmou a professora da História da UFF Ynaê Lopes dos Santos. — Para a população negra, a prática sempre foi vista como extremamente racista. No entanto, apenas na década de 1960, quando a luta dos negros pelos direitos civis se tornou mais intensa, a prática começou a ser vista como altamente preconceituosa não só entre a população negra.

As apresentações de “blackface” eram uma das atrações dos Minstrel Shows, forma de entretenimento cômico e popular desenvolvida nos Estados Unidos de meados ao final do século XIX, em que atores brancos retratavam pessoas de ascendência africana com o objetivo de ridicularizá-las. Usando carvão, rolhas queimadas e outros produtos, os atores pintavam o rosto e partes do corpo de preto, além de realçar a boca em vermelho intenso, para satirizar lábios grossos.

Grotesco para rir

A representação, com dança, esquetes e outros atos, era propositalmente grotesca, ridícula e inferiorizante, com o objetivo de rir do negro, disse a também professora de História da UFF Martha Abreu, especialista no estudo de “blackface”. Segundo ela, com o tempo, essas representações assumiram também tons ameaçadores e sombrios.

— Tudo isso se vincula à escravidão e à ideia de que negros são tão ridículos que precisam ser escravos — disse Martha. — Depois que a escravidão é abolida nos EUA [em 1865], os senhores brancos querem manter a desigualdade, e, para isso, começa a ser divulgado outro tipo de imagem, na qual o negro não é só ridículo e infantil, mas também perigoso e não confiável.

É este o caso do “blackface” em “O nascimento de uma nação” (1915), considerado o primeiro filme da linguagem clássica do cinema, de D. W. Griffith. Na obra, que foi o primeiro filme a ser exibido na Casa Branca, homens negros, interpretados por atores brancos, são estúpidos e têm comportamento sexual agressivo. Os heróis do filme são os membros da Ku Klux Klan.

Outros casos notórios de “blackface” incluem o cantor Al Jolson, cujo apelido era “o rei do ‘blackface’” e que ajudou a definir o formato dos musicais de Hollywood. Com um estilo melodramático, extravagante e histriônico, ele chegou a ser a estrela mais bem paga e famosa dos Estados Unidos na década de 1920.

Desde a segunda metade do século XIX esse tipo de espetáculo passa a ser alvo de críticos negros, como o sociólogo e historiador W. E. B. Du Bois, o pianista precursor do jazz Scott Joplin e o comediante Bert Williams.

Segundo Ynaê, apesar disso, apenas após a luta pelos direitos civis se tornar mais intensa na década de 1960 “a prática começou a ser vista como extremamente preconceituosa não só entre a população negra” nos Estados Unidos. Desde então, de acordo com Martha, ela passará a ser “execrada” na esfera midiática.

No Brasil, a prática é menos comum do que nos Estados Unidos, apesar de ganhar algumas formulações idênticas e populares, como a personagem “Nega Maluca”, que, como observou Ynaê, ainda pode ser vista esporadicamente no carnaval — o que, de acordo com Martha, tem diminuído progressivamente nos últimos 20 anos. Nas artes, o caso mais famoso foi o de “A cabana do Pai Tomás”, novela de 1969, em que Sérgio Cardoso interpretava o escravo Tomás.

Acesso negado

Segundo o historiador da UFRRJ Álvaro Nascimento, a escolha de um branco para o papel revela outro aspecto do “blackface”:

— A alegação foi de que não haveria ator negro à altura do papel. Com o “blackface”, também há uma política de não dar empregos para negros, parte da ideia de que alguns espaços só podem ser ocupados por pessoas brancas — afirmou.

Embora nenhum dos três especialistas seja íntimo do contexto canadense, Martha Abreu disse que “na década de 1980, uma atitude como a de Trudeau já seria muito mal vista e percebida como racista nos Estados Unidos, ainda mais num ambiente educativo” (em um dos vídeos, o atual premier está na escola).

— Ao imitar um cantor, ele vai buscar traços com o objetivo de provocar o riso — disse. — Se ele tivesse dito que ninguém criticava esse comportamento na época não seria verdade, já havia consenso sobre o tema.

A pesquisadora acrescentou que, apesar de ter cometido ações condenáveis, o premier pelo menos tem o mérito de reconhecer o erro, o que indica que as pessoas podem mudar. Sua colega Ynaê concorda:

— Imagino que ele, como um homem branco ocidental, fez uso dos seus privilégios para se “fantasiar” de negro e árabe sem pensar no que isso representava — afirmou. — Mas também considero importante a atitude dele, agora como homem adulto e figura pública, de reconhecer o significado das suas ações e se arrepender publicamente disso. Essa atitude demonstra que é possível entender que o racismo é uma construção. Para lutar contra ele é necessário, primeiro, reconhecer que ele existe, e, logo em seguida, tomar medidas antirracistas.

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