Em 2012, a jornalista Karen* tinha acabado de voltar de um intercâmbio de seis meses no Canadá quando se inscreveu em um processo seletivo para ser trainee de uma multinacional. Assim como ela, cerca de 20 mil pessoas mostraram interesse pelas vagas. Karen ia bem: passou na primeira e na segunda fase. Após a terceira, porém, recebeu a mensagem de que o desempenho apresentado por ela não tinha sido suficiente para que se mantivesse na disputa de uma vaga na área de comunicação, como queria.
O que ocorreu durante essa terceira fase a jovem só consegue descrever como “traumatizante”. A começar pelo fato de que, quando chegou ao local, dos 20 candidatos e três recrutadores presentes, ela era a única pessoa negra. “Ali já bate uma ansiedade, né? Fiquei pensando o que teria que aguentar sozinha”, conta. Por um momento, chegou até a duvidar de si, mas tratou de relembrar que merecia estar ali como qualquer outro candidato. Então, começaram as atividades propostas pelos recrutadores da multinacional.
Outro incômodo veio na sequência. Karen conta que raramente conseguia falar sem ser interrompida, e nas vezes que completava um pensamento e sugeria uma ideia, era ignorada. Passou toda a dinâmica em grupo assim, conta.
A pior parte, no entanto, aconteceu já quase ao fim do processo. Um recrutador anunciou a última atividade: os candidatos deveriam apontar quem entre eles não tinha contribuído e quem menos merecia a vaga. Todos se levantaram e começaram a falar o nome dela. Ninguém viu problema algum. Nenhum recrutador interveio ou achou a situação fora do comum. “Se a pessoa que está fazendo recrutamento também tiver uma atitude racista ou não perceber que a atitude dos outros foi racista, o que a gente vai fazer?”, questiona.
“Em termos de conhecimento e qualificação, eu estava de igual para igual com os outros. Cada etapa que você vai vencendo é uma vitória, mas você vai nadando contra a corrente, né? Uma das coisas que mais me deixou triste foi que tive a oportunidade de começar minha carreira de uma forma muito legal, em uma empresa multinacional, com salário maior que R$ 5 mil, aprendendo com gente incrível da minha área, sabe? É triste tentar imaginar o que poderia ter acontecido com minha carreira se não fosse o racismo”, diz a jornalista.
Por isso, ela foi uma das pessoas que saiu em defesa nas redes sociais do processo seletivo para trainee anunciado pela empresa Magazine Luiza, que só aceitará inscrição de pessoas negras como candidatos.
O objetivo é aumentar a diversidade em cargos de liderança dentro da empresa, que hoje tem apenas 16% deles ocupados por negros e negras. Para tentar evitar situações como as vividas por Karen, a Magazine Luiza tem conversado e feito consultoria com empresas que prestam serviços relacionados à empregabilidade de pessoas negras e de instituição de ensino.
Assim como a rede varejista, a farmacêutica Bayer também anunciou na última sexta-feira (18) a mesma medida para tornar mais justo o acesso de pessoas negras e sua jornada até os cargos de liderança dentro da organização.
Por que ações como essa incomodam?
Medidas como a da Bayer e do Magazine Luiza foram amplamente criticadas nas redes sociais. Uma das maiores discussões seguia em torno da legalidade ou não do processo. Para alguns, escolher apenas negros para participar de uma seleção seria até mesmo inconstitucional, como defendeu a juíza do Trabalho Ana Luiza Fischer Teixeira, quando, no sábado, postou em sua conta do Twitter que “discriminação na contratação em razão da cor da pele: inadmissível. Na minha Constituição, isso ainda é proibido”. A mensagem foi apagada pouco depois.
“A Bayer se orgulha de ter promovido uma conversa pública sobre inclusão e diversidade e reforça seu compromisso com a causa e com o programa. A ação observa a legislação vigente, inclusive o Estatuto da Igualdade Racial, que prevê a possibilidade de ações afirmativas – que têm por objetivo corrigir desigualdades presentes na sociedade, dentre as quais as raciais – por parte das iniciativas pública e privada”, foi a resposta da empresa farmacêutica a Ecoa.
Junto ao Ministério Público do Trabalho, programas como o da Bayer se enquadram como “discriminação positiva”, que, segundo nota técnica, é “um tipo de discriminação que tem como finalidade selecionar pessoas que estejam em situação de desvantagem tratando-as desigualmente e favorecendo-as com alguma medida que as tornem menos desfavorecidas. A cota racial, por exemplo, é um caso clássico de discriminação positiva.”
Para a advogada Luanda Pires, a ação não só é legal como necessária e deveria ser implementada por todas as grandes empresas para que, assim, seja possível contribuir na superação de desigualdades sociais e na colaboração da luta contra o racismo estrutural. “Assim, trazemos essas pessoas, esses grupos historicamente minorizados para dentro da sociedade, dentro das empresas, dentro do mercado de trabalho para que elas possam competir de forma justa com as outras”, diz.
Ela faz alusão ao racismo estrutural presente na sociedade brasileira. O tema também gerou discussão nas redes, com pessoas brancas dizendo que estavam sofrendo uma espécie de “racismo reverso” ao serem excluídos do processo seletivo. A tese de que pessoas brancas sofrem algum tipo de discriminação por causa da cor da pele, porém, não tem fundamentos quando se observa a discrepância nos dados comparativos em diversos setores da sociedade. Para não ir muito longe, basta olhar o quadro atual de funcionários da própria Magazine Luiza: dos altos executivos da empresa, nenhum é negro. Já nos cargos de liderança, 84% são ocupados por brancos.
Na visão de Luiz Augusto Campos, professor de Sociologia e Ciência Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e vice-coordenador do GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa), ainda existe uma parcela importante da sociedade que até hoje não aceitou de fato as ações afirmativas, porque ainda está apegada a uma visão tradicional de um Brasil sem racismo, que vive a farsa de que país é uma democracia racial.
“O problema desse conceito de racismo reverso é que ele escolhe o caso sem olhar a figura de modo geral. Sem analisar o contexto histórico”, diz ele. Ou seja, falar de racismo reverso também passa por não levar em consideração os quase quatro séculos de escravidão enfrentados por pessoas negras que resultaram em um racismo histórico mantido até hoje pela sociedade. “Sem medidas como essa, você não consegue superar o racismo na sociedade. Então, essa medida, na verdade, é antirracista”, opina o sociólogo.
Nós somos 3 mulheres negras vivendo em um país como o Brasil. Infelizmente vivemos na pele a experiência do racismo em suas mais diferentes performances e manifestações, logo, os ataques que a empresa sofreu pouco nos surpreende. Da mesma forma, entendemos que as empresas devem ser convictas em sua missão de implementar a diversidade e inclusão em seus quadros de colaboradores, fazendo a devida diferenciação do que são críticas construtivas e do que são comentários de ódio. Nesse quesito, admiramos muito o Magalu: em nenhum momento a empresa pensou em voltar atrás, mantendo sua convicção e legitimidade do programa.
Indique Uma Preta
Consultoria para formar o programa de trainee
As criadoras do Indique uma Preta — serviço que ajuda empresas a ampliarem o acesso de pessoas negras ao mercado de trabalho — Verônica Dudiman, Daniele Matos e Amanda Abreu participaram como consultoras para o processo de seleção da Magazine Luiza. Um programa de trainee busca desenvolver e aprimorar profissionais com habilidades para assumir posições estratégicas e de liderança. O perfil exigido para concorrer aos programas de seleção costuma ser de jovens bacharéis com idade entre 22 a 30 anos. A remuneração gira em torno de R$ 5 mil.
“Nós acreditamos que a vivência e o repertório valem mais do que a faculdade ou o intercâmbio que você fez. É por isso que iniciativas como a do Magazine Luiza devem ser valorizadas – por levar em consideração a individualidade dos candidatos, bem como o match que eles têm com a cultura da empresa e seus valores”, afirma o trio de consultoras.
Para elas, as empresas devem ser cautelosas ao implementar programas de diversidade e inclusão para que a ação não fique apenas no discurso. Para funcionar, a liderança da companhia precisa estar comprometida, o ambiente deve ser acolhedor e as metas quanto ao programa devem ser compartilhadas e bem distribuídas.
Jaqueline de Jesus, doutora em Psicologia Social do Trabalho e a primeira gestora do Sistema de Cotas para Negras e Negros da Universidade de Brasília, reforça como esse olhar para o desempenho individual e a vivência dos candidatos é fundamental para quebrar uma lógica de exclusão sistemática de pessoas negras, que acaba privilegiando pessoas brancas.
“O próprio sistema se articula estruturalmente para essa exclusão já no processo educacional. E isso a gente pode explicar sob duas perspectivas: o jovem que vem de uma família que geralmente é ele quem trabalha de dia para conseguir bancar o próprio estudo à noite. Do outro lado, gerações de famílias brancas em que os pais arcam com os estudos dos filhos, deixando esse jovem ‘livre’ para apenas estudar e se aperfeiçoar. Nesse processo, já nasce uma desigualdade que se perpetua”, explica a especialista.
Segundo ela, as ações afirmativas e programas de traines com um recorte específico diminuem “o ônus que caiu durante séculos no Brasil e nas Américas para a população negra, que teve que sustentar essa sociedade com a força do seu trabalho sem ter retorno algum e nenhuma política de reparação.”
Pensando na questão do ensino dos candidatos, a Magazine Luiza também contou com o auxílio da Faculdade Zumbi dos Palmares. A princípio, para entender qual seria o público alvo do processo seletivo. Geralmente, são escolhidas pessoas formadas em instituições de ensino concorridas. Apesar de terem ações afirmativas, o número de pessoas negras que conseguem acessar essas universidades ainda é pequeno. Em 2019, por exemplo, a USP (Universidade de São Paulo) possuía 25,2% de estudantes negros ou indígenas.
“E por conta disso, a Magazine Luiza entendeu que deveria ter um foco dirigido para onde se concentra esses públicos, ou seja, mais para dentro das Universidades privadas e principalmente, mais para dentro das Universidades públicas que praticam a política de cotas”, conta José Vicente, sociólogo e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares. “Também discutimos como possivelmente esse jovem teria dificuldade no primeiro momento de apresentar conhecimento na segunda inglesa”.
Trabalho de desenvolvimento de jovens líderes
A ideia é que o programa de trainee seja apenas um passo na construção de um quadro de funcionários mais plural, que passa pela inclusão, permanência e desenvolvimento destes profissionais.
“Estamos cientes de que precisamos alçar mais colaboradores negros que já estão na empresa a postos de liderança. Para isso, fortalecemos medidas e processos já em curso na empresa. O nosso recrutamento interno, por exemplo, já é bem efetivo. Hoje, preenchemos mais de 80% das nossas vagas de liderança com profissionais da própria companhia, e para isso realizamos sólidos programas internos de desenvolvimento, além de custear para nossos colaboradores, na sua maioria negros, bolsa de estudo para quem quer que solicite sem crivo de curso, exatamente para que esses colaboradores estejam preparados para essas posições”, diz Patrícia Pugas, diretora-executiva de gestão de pessoas da Magazine Luiza.
Para trabalhar a inclusão e a diversidade dentro de organizações, especialistas explicam que é preciso criar políticas e práticas internas para que cada pessoa inserida dentro de uma estrutura majoritariamente homogênea consiga, de fato, se desenvolver e crescer em cargos e funções com maior poder de decisão.
Nesse sentido, a Bayer, empresa de químicos e farmacêuticos de origem alemã, também lançou nesta semana o seu primeiro programa de trainees voltado para valorização da diversidade étnico racial, oferecendo um salário de R$ 6,9 mil e uma trilha de desenvolvimento com conteúdos de aprendizagem técnica e sócio emocional. A iniciativa terá uma jornada de 18 meses e contará com uma experiência de autoconhecimento e aprendizagem a partir de três pilares: protagonismo e saúde mental; liderança; educação e carreira.
De acordo com Elisabete Rello, diretora de Recursos Humanos da Bayer Brasil, as ações visam fortalecer a autoestima e desconstruir crenças limitantes, além de trabalhar um espaço de construção para reflexão das referências que inspiram e encorajam as histórias dos profissionais selecionados, suas aspirações e perspectivas de futuro.
Com base nesses conhecimentos entenderemos em que medida estão alinhados aos nossos valores. Entendemos que as competências técnicas se aprendem, mas que a bagagem de cada profissional é única e que na composição de um quadro cada vez mais diverso teremos mais condições de inovar.
Elisabete Rello, diretora de RH da Bayer
“Pensamos em um formato para ser inclusivo. Podem participar profissionais negros graduados (bacharelado ou tecnólogo) ou pós-graduados entre Dezembro/2017 e Dezembro/2020. Não há critério definido com relação ao tipo de curso ou instituição de ensino do candidato. Nós não exigimos inglês, haverá um subsídio para o aprendizado e aperfeiçoamento do idioma para os cargos que demandam domínio da língua”, explica a diretora. Após o início do programa, os profissionais terão a oportunidade de liderar projetos estratégicos com alto impacto para a organização.
A advogada Luanda Pires vê de maneira positiva essa movimentação. “Espero e acho que isso vai virar uma tendência de mercado. Além de Magazine Luiza e Bayer, algumas outras empresas já têm ações afirmativas parecidas para contração. São medidas que devem ser implementadas por todas as grandes empresas para que a gente consiga realmente superar essas desigualdades. E sem dúvida nenhuma, quando a gente fala de inclusão de grupos historicamente e socialmente minorizados, acredito que a gente vá conseguir abrir um pouco mais o diálogo e estender [processos como esses] para todos outros grupos, para as mulheres, para as pessoas transexuais, para a população LGBI+ de forma geral”, completa.