Por Waldeci Ferreira Chagas: 13 De Maio não é dia de Negro, e nem de Negra

Enviado por / FontePortal Araçagi

O dia era 13 de Maio de 1973, ele tinha 10 anos, e estudava a 3ª serie primaria no Grupo Escolar, localizado na periferia da cidade. A aula nesse dia o marcara, e nunca esquecera o conteúdo, pois passara a se entender negro, e compreendera as tantas coisas que lhe ocorriam e vieram a ocorrer na vida, principalmente na escola.

A Professora pedira que os estudantes fizessem trabalhos sobre as chamadas datas comemorativas. Dentre as tantas datas escritas no quadro, escolhera o 21 de Abril, enquanto o seu amigo Edson que também era negro escolhera o dia 13 de Maio, “considerado Dia da Abolição da Escravidão, ou Libertação dos Negros”, como explicara-a.

A Professora, assim como a Diretora do então Grupo Escolar eram negras, mas nunca tratavam tal questão, exceto nesse dia. Mesmo assim não se reportavam as pessoas negras. Falava-se, da escravidão a que tais pessoas foram submetidas no Brasil, e nesse dia foram libertas pela Princesa Isabel, considerada a “redentora”. Essa era a história escrita no livro de História, e que a Professora brilhantemente contara, e esperava Edson trouxesse.

Na aula anterior quando passara o trabalho, fizera uma espécie de introito as datas que se comemoravam no 1º bimestre: 19 de Abril Dia do Índio, 21 de Abril Dia da Morte de Tiradentes, e não era Inconfidência Mineira, 22 de Abril Dia do Descobrimento do Brasil e 13 de Maio Dia da Abolição da Escravidão.

Feitos os trabalhos meninos e meninas apresentavam-nos, ele fizera sobre o 21 de Abril Dia da Morte de Tiradentes. Para tanto, utilizara livros antigos que pedira emprestado aos vizinhos; meninos e meninas mais velhos que cursavam o ginásio em outra escola. O Grupo Escolar onde estudava não tinha biblioteca e o livro didático quando tinha era o único que se lia. A Biblioteca Pública localizada no Centro da cidade, era lugar onde meninos e meninas da periferia não tinham acesso.

Mesmo assim, fizera o trabalho que a Professora mandara, e escrevera numa folha de papel pautado que na época se chamava almaço. No dia fora lá com sua folha em mãos apresentar, ou seja, ler sobre a trama que montara, a partir do que retirara dos Livros de História consultados dos meninos/as vizinhos/as. Lera e falara do esquartejamento que as autoridades portuguesas fizera com Tiradentes por ele ter desobedecido as leis vigentes no BRASIL da época. Mesmo tendo sido assassinado e esquartejado, a história de Tiradentes fascinara o menino.

O propósito da Professora com tais trabalhos não fora outro, senão plantar nos meninos e meninas o espirito de nacionalidade, obediência e amor à Pátria. Dissera a Professora: Tiradentes morrera por amor ao Brasil. Deu sua vida para libertá-lo do poder de Portugal. A imagem de Tiradentes exposta no Livro de História e a narrativa na qual estivera envolvido, levara o menino a associá-lo a Jesus Cristo; sempre que falavam sobre Tiradentes vinha-lhe a mente a imagem do Cristo Crucificado.

Mas o esquartejamento de Tiradentes também o levava a associar aos bodes que o Senhor José todas as sextas-feiras matavam no quintal de casa e levavam aos pedaços para ser vendidos aos sábados e domingos na Feira de Oitizeiro. O corpo de Tiradentes não alimentara os tantos meninos e meninas que no BRASIL tinham fome, mas seu sangue derramado sobre o chão correra por veias distintas: fora ele o mártir da independência? Afinal morrera em defesa da liberdade do povo brasileiro. Dessa veia o menino tinha medo, pois não queria morrer. A outra veia apontava que aquele seria o destino de quem ousasse afrontar o sistema. Essa também amedrontavam-no, afinal ambas as veias indicavam a morte como consequência dos atos políticos. A terceira veia, implícita, embora estivesse relacionada a primeira apontava o amor incondicional a Pátria como solução, sobretudo, porque aquela era a época do “Brasil. Ame-o ou Deixe-o”.

Com tal trabalho se ensinava e aprendia-se que todo ato de contestação a ordem instituída era uma forma de desamor a Pátria. Quem a amava a aceitava do jeito que era. Afinal dizia-se que o amor superava qualquer dificuldade. Mas nem sempre se pensava assim. Muitos contestaram, isso não quer dizer que não amassem-na. Amavam sim, e por isso contestaram, mas essa história não se contava e quando a esses se referiam chamavam-nos “traidores da Pátria”; terroristas. Embora não concordasse permanecera calado, mas calado a boca, o peito batia acelerado como se quisesse explodir contra aquelas afirmações.

Mas fora a aula do dia 13 de Maio, dia da Abolição da Escravidão, ou Libertação dos Escravos que despertara a mente daquele menino e o levou a se reconhecer negro. Seu amigo Edson, também negro, fizera o trabalho sobre tal data. No dia fora lá no centro da sala de aula, e diante dos meninos e meninas seus colegas começara a apresentar. Ouvia-se atentos, sobretudo, porque Edson era o aluno exemplar, estudioso, comportado, tirava boas notas e levava o nome do Grupo Escolar as alturas, era bom de futebol; esporte comum entre os meninos negros da época, sobretudo, porque em 1970, o Brasil ganhara a Copa do Mundo com Pelé, consagrado o Rei do Futebol.

Logo, era comum os meninos negros desejarem sê-lo, e nas peladas na hora do recreio todos gritavam “eu sou o Pelé”. Ele nunca quis ser o Pelé, não porque não o admirasse. Mas porque não gostava de jogar futebol e nunca sonhara ser jogador de futebol. Mesmo assim admirava o jogador, entronado Rei do Futebol. Ele queria ser Engenheiro e não Jogador de Futebol.

Ele admirava o amigo Edson, que todos achavam parecido com Pelé, a começar pelo nome e habilidade com a bola, pois era o bom jogador do time, mantido pelo Grupo Escolar.

Edson, pôs à frente da turma e em instante o silêncio se fizera sem que a Professora tenha solicitado. Afinal o nosso Rei iria falar, não demorou e começara sua narrativa sobre o 13 de Maio; dia consagrado “a libertação dos escravos”, ato realizado pela Princesa Isabel, considerada “a redentora”. Era assim que estava escrito no Livro de História que Edson a época consultara.

Concluída a primeira parte do trabalho, passara a narrar as condições em que as pessoas negras viviam no Brasil, os mal tratos e castigos imputados aos que ousaram livrar-se da escravidão. Nesse instante, enquanto Edson lia, começara a chorar. A Professora considerou fosse o nervosismo, medo e insegurança por estar à frente dos/as amigos/as apresentando o trabalho, visto ser um menino tímido, introvertido, muito mais do que aquele que apresentara sobre o 21 de Abril.

O choro de Edson, chamou atenção do menino que outrora apresentara. Impulsionado pelo choro do amigo, não se conteve, levantou-se e foi até ele, que lia e chorava com a voz tremula. Não se conteve, baixou a folha de papel almaço que Edson lia, e viu nela as imagens de homens e mulheres negras amarrados/as, chicoteados/as e presos/as como se fossem os animais que o Senhor José comprara para abater nos finais de semana e vender a carne no mercado da feria de Oitizeiro. Nunca vira tais imagens e se impressionara, acreditara Edson também e por isso chorara. Nesse instante pôs a mão esquerda no ombro do amigo e voltou a sentar, enquanto Edson encerrara a apresentação, confortado pelo toque do amigo, mas abalado com o que apresentara.

Os dois meninos por uns instantes ficaram quietos, porque se viram negros, mas não escravizados tal qual os homens e mulheres das imagens que Edson colara no seu trabalho. Mas certamente passara a entender as razões pelas quais tratavam-nos na escola. Edson era bom de futebol, e logo associado a Pelé, o Rei do Futebol, portanto, era aquele menino preto, o Rei do Grupo Escolar. Por isso, era respeitado e com quem não se diziam piadas desqualificante de sua raça.

E você que não sabia jogar futebol, que futuro lhe estava reservado? Naquela aula do dia 13 de Maio de 1972, Edson lhe possibilitara e também aprendera que no 13 de Maio de 1888 negros e negras no Brasil não foram libertados/as. Vocês eram tão meninos, com apenas 10 anos, mas descobriram, e cedo aprenderam a resistir, Edson chorou, um choro contido, não se sabe se de raiva, ou de emoção. Mas passou a resistir usando a habilidade que dispunha no corpo, qual seja, a de jogar futebol. Na hora do recreio se impunha, pois passara a coordenar os jogos, afinal era o melhor aluno e jogador de futebol daquele Grupo Escolar.

O outro menino negro; aquele que consolara Edson na hora que apresentava o trabalho, era gordo, e cedo se vira inábil para jogar futebol, mas o amigo não o queria fora da equipe. Apesar de ele dizer que não gostava de jogar futebol, era escalado pro time e ficava no gol, pois a sua estrutura corpórea talvez impedisse a bola do time adversário de furar o gol do time em que Edson jogava.

Lembro tê-lo visto jogar uma, duas, ou três partidas. Mas logo desistira e passara a se preocupar com outras coisas que aprendera naquele 13 de Maio. Por exemplo a buscar liberdade. Edson dissera que aqueles homens e mulheres só eram castigados/as porque se negaram a ser escravizados/as.

Logo, 13 de Maio ainda não é o dia de se comemorar a libertação das pessoas negras como lhes dissera a Professora no Grupo Escolar. A Lei assinada em 1888 não lhes garantira cidadania, sobretudo, porque nenhum trabalhador/a negro/a que desde menino/a trabalhara em regime de escravidão fora indenizado/a.

13 de Maio, esse é o dia em que homens e mulheres negras resistem, existem e mantém viva as lutas contra a violência cometida as mulheres negras, a morte dos jovens negros nas periferias Brasil a fora, e o desmonte das políticas de ações afirmativas que vinham assegurando, ainda que lentamente a cidadania a gente negra. Nessa luta ainda se incluem o desemprego que atinge a população negra, a falta de acesso aos serviços públicos de saúde, moradia e de acesso à educação, água tratada, luz elétrica, internet, transporte público, lazer e alimentação. Eis as razões porque 13 de Maio não é dia de Negro e nem de Negra, é dia de Luta contra a Opressão e Exclusão da Gente Negra.

Waldeci Ferreira Chagas – Graduação em História pela Universidade Federal da Paraíba (1992), Mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1996) e Doutorado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2004).

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