Fiquei surpreendida há algum tempo quando uma amiga portuguesa no Facebook, que se dizia católica, me contava com grande entusiasmo sobre as festas judaicas. Não, não tinha vivido em Israel. O que se passava então? Ela nunca disse que era judia mas também não era necessário que o dissesse para a entender. A verdade é que, para um português, alguém ter ou não ter ascendência judaica não tem qualquer importância. Vem isto a propósito de uma nova lei aprovada em abril passado no Parlamento em Lisboa que atribui a nacionalidade portuguesa aos descendentes dos judeus sefarditas expulsos de Portugal a partir do século XV. Para quem não sabe, os judeus sefarditas são os judeus originários da Península Ibérica.

O que teria levado os deputados a discutir e a aprovar uma lei relacionada com um acontecimento histórico tão distante?

A nova lei teve origem em 2011, quando foi apresentada ao Parlamento português uma petição por iniciativa de um grupo de descendentes de judeus sefarditas residentes fora de Portugal. Um dos mais ativos membros deste grupo é o rabino Luciano Mordekhai Lopes, de 39 anos, nascido em São Paulo, no Brasil, mas residente na Flórida, EUA.

Dizia a petição: “Os judeus sefarditas foram expulsos de Portugal ou forçados ao exílio a partir das perseguições de finais do século XV (…) Presentemente, constituem um grupo pequeno, tendo alguns membros cidadania israelita, sendo que a maioria vive no Brasil na maior parte do tempo e correspondendo quase todos a indivíduos com educação de nível superior, em geral profissionais liberais. Assim sendo, nós, (…) vimos solicitar perante os Poderes constituídos da República Portuguesa, a restituição da nacionalidade portuguesa aos judeus sefarditas portugueses”.

Os parlamentares concordaram e aprovaram por unanimidade uma alteração à Lei da Nacionalidade com vista a garantir que estes descendentes tenham direito a tornar-se portugueses sem necessitarem, para tal, dos requisitos exigidos a outros candidatos.

“Acho que não se pode apagar o que se fez no passado mas pode-se consertar coisas para o futuro. O povo português, historicamente, nunca foi antissemita. Historicamente, tirando o período da Inquisição, não cultivou o antissemitismo. Por isso a meu ver este gesto, sim, fecha uma página da história, que não pode ser apagada, mas a vida segue”, diz o rabino Luciano Mordekhai Lopes.

Poucos dirão que esta não é uma iniciativa justa ou que a lei aprovada não é justificada.

Um pouco de história

Antes do final do século XV, Portugal era o único país da Europa onde os judeus não eram perseguidos. É verdade que no território da União Polaco-Lituana, os judeus não eram reprimidos, muito pelo contrário. Mas tinham sido expulsos de Inglaterra, no século XIII, de França, no século XIV e, posteriormente da Alemanha e Rússia. Em várias cidades-Estados da Itália, só podiam permanecer em guetos fora das muralhas da cidade. Não podiam praticar o comércio e outras atividades lucrativas, estavam privados de direitos políticos e civis. A única exceção era Roma, onde o Papa lhes permitia o direito de ali residir, dando-lhes proteção. Em Portugal viviam de forma bastante livre, trabalhando como ourives e joalheiros. Bem integrados, vestiam-se e comportavam-se de tal modo que ninguém os distinguia dos cristãos. Alguns tinham títulos de nobreza. “A perturbação deste ambiente criativo e civilizado e a substituição da tolerância e do respeito por uma perseguição implacável constitui, sem qualquer dúvida, o pior de todos os efeitos que Portugal sofreu com a crescente influência espanhola, sobretudo a partir do domínio filipino”, escreve Martin Page no seu livro “A Primeira Aldeia Global”.

D. Manuel I começou por acolher os judeus que haviam sido expulsos de Espanha quatro anos antes.

Mas, quando se quis casar com a infanta espanhola D. Isabel, uma das condições dos seus futuros sogros era que o rei português teria que se livrar de todos os judeus que viviam em Portugal. Este era um dilema para D. Manuel, o que o levou a emitir três ordens contraditórias: primeiro determinou que os judeus que não se convertessem deveriam abandonar o país até à Páscoa de 1497, depois emitiu nova ordem proibindo os judeus de partirem. Por fim, no domingo de Páscoa, mandou juntar todos os judeus conhecidos e metê-los em igrejas, onde foram batizados. Nasciam assim os “cristãos-novos”. Deste modo, fez a vontade aos Reis Católicos e casou com a filha.

Os “cristãos-novos” adaptaram-se com alguma facilidade ao seu novo papel. Um grande número praticava as duas religiões em simultâneo.

Mas, quando Portugal caiu sob o domínio espanhol, em 1580, D. Filipe deu poderes à Inquisição para se financiar através dos bens confiscados aos condenados por heresia, muitos dos quais judeus.

É de referir que alguns “cristãos-novos” que foram condenados ao desterro para o Brasil não consideravam o fato como uma punição.

Muitos judeus regressaram a Portugal após a revolução liberal de 1834.

Nos dias de hoje, curiosamente, os genes de judeus sefarditas estão presentes em cerca de 30% dos homens portugueses.

A quem vai servir a nova lei?

Parece que a nova lei tem um valor puramente simbólico, já que serão poucos a pretender utilizá-la. O rabino Luciano Mordekhai Lopes estima os interessados em cerca de 50.

Na verdade, tendo muitos judeus regressado após a revolução liberal no século XIX e tendo várias comunidades de judeus portugueses na Europa, por exemplo, na Holanda, sido exterminadas quase na totalidade durante a Segunda Guerra Mundial, não são muitos os que quererão voltar. Fora de Israel, os principais locais de implantação dos judeus de origem portuguesa são hoje o Brasil, Estados Unidos e Caraíbas.

Há que ter em conta que a petição que levou à aprovação da lei foi uma iniciativa pessoal do rabino Luciano Mordekhai Lopes, que tentou durante 13 anos sem sucesso obter a nacionalidade portuguesa junto dos cônsules portugueses em Vancôver, Paris, Telavive e São Paulo e encetou depois contatos com políticos portugueses do Partido Socialista e Partido Popular, nomeadamente com o deputado José Ribeiro e Castro, do CDS-PP.

Parece, pois, trata-se de interesses particulares que são transpostos para a lei.

Já de acordo com o jornal israelita The Times of Israel, a motivação da lei (e de uma norma similar aprovada antes em Espanha) tem a ver com a atração de capitais para os dois países em estagnação. Diz o jornal que o fato de se gastar imenso dinheiro na Europa a desenvolver locais históricos ligados à herança judaica visa atrair turistas, sendo o apelo à diáspora sefardita uma forma de beneficiar as economias de Portugal e Espanha.

Segundo Michael Freund, presidente da associação Shavei Israel, esta lei não deixa de ser uma ironia da história.

“Há cinco séculos, a expulsão aconteceu em parte porque os governantes ibéricos queriam ficar com os bens dos judeus. Agora vemos esforços para trazer de volta os judeus, em parte, pela mesma razão.”

 Quer tenha tido motivação económica ou sido resultado de uma motivação estritamente pessoal do rabino Luciano Mordekhai Lopes, a verdade é que a nova lei parece ser mais do aquilo que diz ser.

 

 

 

Fonte: Voz da Russia