Pra quem caiu a letalidade policial?

A dúvida sobre quem é negro no país a polícia já resolveu a bala.

Lá fui eu ler a matéria nesta Folha com a seguinte manchete “Mortes pela polícia caem no Brasil pela primeira vez em oito anos.” No país cuja polícia mata, em números absolutos, seis vezes mais do que a dos EUA e cujas taxas de homicídio estão entre as mais altas do mundo, rivalizando com Colômbia, México e Venezuela, a redução do Estado que mata —mesmo que por uma pequena margem de 4% em 2021 em relação ao ano anterior— parece algo positivo.

E aí está o engano. O bálsamo efêmero propiciado pela dita manchete evaporou quando encontrei um corpo negro, igual ao meu, estendido no chão logo ali no subtítulo da matéria: se você é negro, a letalidade policial aumentou 5,8% no mesmo período; se você é branco, celebre: a polícia te matou 31% menos.


Dito de outra forma, as polícias brasileiras mataram 5 em cada 100 mil negros em 2021; entre os brancos, o índice é 1 a 100 mil. Isso vale igualmente para povos indígenas. Se você não mora na região onde o estado, o tráfico, e o genocídio indígena matam, celebre: 6% das mortes violentas diminuíram no país; se você mora na região Norte, chore: houve aumento de 9% nas mortes violentas. A dúvida sobre quem é negro no país a polícia já resolveu a bala.


Esse é tempo de um país partido. Há quem viva na Suécia, e governe os demais a partir dali, e há quem viva nas trincheiras de guerra do lado de cá e por outros é governado e morto. Acostumamo-nos tanto a sermos um país de mortes partidas, do genocídio cotidiano cindido, que esquecemos que estamos todos no mesmo navio negreiro onde o braço armado do Estado executa, entre suas vítimas, 84% de negros.


O problema, meus caros, é que, enquanto a Suécia não entender que é ela quem comanda a execução do nosso lado sírio de cá, enquanto não entendermos que o país cindido pelas mortes que só recaem em uma margem do rio é um só país, não conseguiremos entender que, para o corpo negro estendido no chão, a letalidade persiste e não há nada a celebrar.

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...