Pré-vestibular gratuito voltado para negros leva mais de 1.500 alunos para a universidade: ‘Sistema opera para boicotar’

Criado há 25 anos, o Instituto Steve Biko tem sede no bairro do Pelourinho, em Salvador.

Instituto Steve Biko completou 25 anos de história com mais de 1.500 alunos em universidades (Foto: Divulgação / Instituto Steve Biko)

Por Henrique Mendes Do G1

Morto em 1977, o ativista Steve Biko, um dos símbolos da luta contra o apartheid na África do Sul, deixou reflexões que até hoje mobilizam o movimento negro no mundo. Nos embates que travou contra a segregação, disse que “o racismo não implica apenas a exclusão de uma raça por outra. Ele sempre pressupõe que a exclusão se faz para fins de dominação”.

A consciência de que o racismo resiste e continua moldando as práticas sociais fez nascer um instituto que, desde 1992, busca a inserção dos negros no espaço acadêmico como estratégia para a ascensão social e para o combate à discriminação racial. A entidade, que não tem fins lucrativos, ostenta o nome do ativista sul-africano, em Salvador.

Pioneiro, o Instituto Steve Biko promove há 25 anos um curso preparatório gratuito para o vestibular voltado para estudantes negros e negras, que tenham formação no ensino público e com baixa renda comprovada. Desde que começou a atuar, já recebeu mais cinco mil estudantes e foi responsável pelo acesso de mais de 1.500 no ensino superior.

Aos 39 anos e recém-aprovada no curso de pedagogia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Nívea Maria da Silva Trindade, que é ex-aluna do instituto, reflete sobre o papel da educação na ascensão da população negra nas universidades.

“O sistema opera o tempo em nos boicotar. Não quer que participemos daquilo que todo o cidadão tem direito. Nós somos cidadãos brasileiros também, mas o sistema não considera. Temos ofícios de base que somos fadados a praticar. Não há demérito, não há problema nenhum em ser garçom, gari, doméstica. Mas por que não ser médica, advogada, pedagoga? Esse é o grande diferencial [do instituto], que nos traz essa consciência política dos nossos direitos. Nos ajuda a identificar as artimanhas para nos fortalecermos”.

Diretora executiva do Instituto, Jucy Silva diz que a avaliação da estudante faz valer a missão da organização. “A Steve Biko consegue preencher uma lacuna que é da educação, da educação pela cidadania. Ela resgata a autoestima. Faz com que [estudantes negros e negras] possam acreditar que têm direito de escolha, que podem fazer a carreira que desejarem. Se preferirem ter mais conhecimento, eles podem. Ao longo desses 25 anos, a gente prova que é possível fazer uma educação de verdade para a comunidade negra”.

Aula inaugural do pré-vestibular, em Salvador (Foto: Divulgação / Instituto Steve Biko)

Cidadania e Consciência Negra

O Instituto Steve Biko nasceu por meio de professores e estudantes negros e negras, que se reuniam nos jardins da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no centro de Salvador, de forma integrada às lutas antirracistas praticadas no mundo.

Nos seis primeiros anos de atuação, funcionou em casas de militantes do movimento, como também em escolas que simpatizavam com a causa. Em 1999, após receber o prêmio nacional de Direitos Humanos do Governo Federal, obteve a concessão de uma sede, por meio do Governo do Estado, que fica no Largo do Carmo, no Pelourinho.

É lá que, desde então, continua oferecendo curso pré-vestibular gratuito para estudantes negros. É de lá também que oferta ações de fomento à Ciência e Tecnologia para estudantes afrodescendentes das escolas estaduais, por meio de um projeto intitulado como “Oguntec”.

Além dos conteúdos tradicionais cobrados nos vestibulares e no Enem, os estudantes do Instituto têm a disciplina “Cidadania e Consciência Negra (CCN)”, com questões que resgatam a cultura afrobrasileira e a trajetória dos ativistas na luta contra as desigualdades.

Ao todo, são oferecidas, anualmente, 70 vagas no curso pré-vestibular e 30 no Oguntec. Os interessados passam um processo de seleção feito na própria entidade. Os trabalhos são mantidos por meio de parcerias e doações. “A instituição não tem recurso próprios. Ela vive de doações, editais. Temos também alguns parceiros. Além disso, qualquer pessoa pode fazer doação pelo site”, explica a diretora executiva, Jucy Silva.

Atualmente, o Instituto vive a expectativa de construção da Faculdade Biko, que ampliaria a oferta de vagas no curso pré-vestibular de 70 para 500. Além disso, passaria a oferecer gratuitamente o curso superior em Pedagogia. A seleção também estaria voltada para estudantes negros e negras, que tenham formação no ensino público e com baixa renda comprovada.

Um casarão localizado no bairro do Campo Grande, em Salvador, foi concedido pelo Estado ao Instituto. ” A ideia é que seja uma faculdade aberta e popular. Começaram nesse ano as obras. A gente tem a esperança de chegar em dezembro com tudo pronto”, defende Jucy Silva. Para isso, destaca que as parcerias e doações são fundamentais.

Sam Ferreira, de 20 anos, e Nívea Trindade, de 39 anos, são ex-alunos do instituto (Foto: Arquivo Pessoal )

Universidade: ‘Espaço de poder’

Recém-aprovada no curso de pedagogia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Nívea Maria Trindade é moradora de Pernambués, bairro que concentra a maior população negra de Salvador. Segundo o último Censo Demográfico, que foi realizado em 2010, a localidade tem quase 54 mil habitantes que se declaram negros.

Foi no convívio com as dificuldades inerentes aos bairros periféricos, que a estudante disse que foi absorvendo a consciência do que teria que enfrentar como uma mulher negra. Para se formar no ensino médio, caminhava mais de oito quilômetros, somando as distâncias de ida e volta entre a casa e a Escola Estadual Raphael Serravale, na Pituba. “Era uma hora caminhando [cada trecho]. Não tinha dinheiro para o transporte”.

Formada em magistério, em 1998, não conseguiu se incluir no mercado de trabalho na área da educação. Atuou informalmente com o reforço escolar, mas as dificuldades financeiras impuseram a necessidade de atuação em outros segmentos. “Eu vi que a coisa não dava para manter. Trabalhei como babá, balconista. Tudo sem carteira assinada”. Hoje, quase dez anos após a formação, atua com o fiscal de prova e também vendendo lanches.

Recém-aprovada no vestibular, após um ano no preparatório do Steve Biko, começa as aulas de pedagogia neste mês de agosto. “É um sonho que estou realizando. Esse primeiro semestre, quero experimentar tudo com a mente mais tranquila. Moro com meus pais e irmãos, que estão segurando a barra [financeiramente]. Amadureci precocemente. Estou voltando a tempo [para a sala de aula]”.

Quem também saiu do Steve Biko diretamente para o ensino superior foi Sam Ferreira, de 20 anos. Ele passou pelo projeto em 2016. Atualmente, é aluno do curso de Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades (BI), da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Morador de Cajazeiras, área periférica de Salvador, revela o que considera o trunfo do projeto.

“As outras instituições ensinam a passar o conteúdo de forma metódica. Lá [no Steve Biko], constrói formação intelectual e ajuda a construir a identidade. Lá se estuda todos esses aspectos sociais dos quais convivo diariamente e não tinha consciência acerca disso. Consegui entender a minha posição enquanto jovem negro. Eu não aceitava minha estética negra, o cabelo. Me aproximava da estética eurocêntrica. Isso foi mudando e foi me ajudando a me aceitar”.

Estudante do primeiro semestre de direito da UFBA, Wellington Castro, de 26 anos, reflete o funcionamento da universidade, a partir da sua formação. “A entrada de alunos negros nas universidades públicas é muito recente. As cotas são um debate recente. A maioria dos alunos ainda são brancos. Tem a questão do currículo também. O currículo não consegue compreender as particularidades do povo negro. Foi feito tendo como base os brancos. Se eu não estivesse passado pela Steve Biko, eu não estaria pensando dessa forma. Nossa entrada [na universidade] tem um significado maior. É um espaço de poder”.

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