“Precisamos que se pense fora da caixinha” entrevista Isis Conceição

Pesquisadora das áreas de Direito Internacional, Direito Constitucional, Direitos Humanos, Direito do Consumidor, Direitos da Criança e Justiça Racial, Isis Conceição será uma das conferencistas a falar no Encontro de Jovens cientistas em comemoração a 2018 como Ano Internacional da Mulher Rural. Em entrevista, Isis contou sobre a sua trajetória profissional e acadêmica, sonhos, dificuldades e deixou uma grande mensagem de estímulo aos jovens cientistas. Confira!

enviado por Mamadu Seidi no 

imagem- Imprensa Jovens Cientistas

EJC – Além de ser uma servidora pública do Direito você também é uma pesquisadora da área. Em que momento da vida decidiu que esse era o campo que queria seguir? 

Sim, eu sou uma profissional do Direito com sólidas experiências técnica e acadêmico jurídicas. A minha “simpatia” com a advocacia, ou seja, abraçar uma causa em defesa de algo que acredito, vem desde a minha infância. Me recordo de ouvir do advogado da colônia de férias do sindicato dos metalúrgicos do ABC, quando eu tinha uns 8/9 anos, que eu tinha eloquência de advogada.  No colegial, eu me dei muito bem com as disciplinas exatas, me destacava nas feiras de ciências com meus projetos e, por isso, no momento do vestibular optei inicialmente por engenharia química, para especializar-me em engenharia de alimentos, e tinha como segunda opção engenharia de materiais.  Acontece que o medo da escolha de uma profissão pra vida e uma conversa com minha mãe me fizeram recordar dos “sábios ensinamentos” de Paulo Coelho: “a primeira profissão que você escolhe é a que você realmente quer”. Por isso prestei direito, mas aquela curiosidade científica da menina que misturava cândida com água do pé de bananeira para fazer um super manchador de roupas nunca deixou de existir em mim.

A pesquisa em Direito me permitiu me aproximar da ciência jurídica e alegrar aquela curiosidade permanente.  No primeiro ano da faculdade na UNESP já trabalhava para o IBGE e era orientada pelo professor de Processo Penal, o primeiro negro a formar-se na minha universidade em direito e o primeiro brasileiro a doutorar-se em direito em Coimbra.  No decorrer da graduação, fiz pesquisa e extensão trabalhando ou com bolsa (fui bolsista da reitoria, monitora de sociologia e economia, bolsista do Pibic e bolsista da FAPESP, além de fundar o grupo de pesquisa e extensão no campus NUPE, atuar no Juizado Especial, editora da revista de acadêmicos e comissões da universidade). Saí da graduação aprovada em concurso do Tribunal de Justiça e lá aprendi a técnica e prática que os bancos universitários não ensinam. Ao mesmo tempo em que trabalhei fiz a minha especialização em Direitos Humanos, o mestrado em Direito do Estado e os créditos do Doutorado, mestrado e doutorado sob orientação da primeira e única mulher negra a ser professora da Faculdade de Direito da USP. Já na época do mestrado, 2009, comecei a dar aulas em faculdades privadas, mini cursos e palestras e percebi que não poderia ficar só no espaço da linha de produção que são os Tribunais e dos movimentos sociais (trabalhei durante mais de 10 anos para a Educafro, fundamos a pessoa jurídica mantenedora do projeto, e fundei também o IDDAB ( Instituto de Desenvolvimento da Diáspora Africana no Brasil).

Mesmo quando estive na mais alta corte do país percebi que um algo de linha de produção fordista impedia o necessário “pensar” aprofundado e crítico. Naquele momento concluí que tão importante quanto ser alguém que tem poder de decisão é que quem aconselha aquele que decide também tenha formação crítica. Terminou por reafirmar o que aprendi no meu mestrado em Teoria Crítica Racial na UCLA, “um professor tem muito mais poder de impacto e transformação social ao formar profissionais do direito críticos e sensíveis”. Então, eu devo admitir que não consegui escolher, pois a técnica precisa de saber produzido para legitimar suas demandas transformadoras. E os pensadores têm que saber os limites da prática, de forma a não produzirem saber pouco útil às necessidades dos grupos sociais que atuam nos espaços institucionais. É por isso que acredito não ter escolhido e nem creio ser necessário escolher. É essa não escolha, somada ao meu perfil hiperativo, que me permite atuar em tantos espaços jurídicos.

EJC – Enfrentou dificuldades para chegar onde está hoje em sentido acadêmico e profissional? Se sim, quais foram essas dificuldades e como conseguiu resolvê-las?

Sim, dificuldades sempre existem para todos na vida, comigo não foi diferente e consigo identificar algumas das que encontrei. Se partirmos da premissa de injustiças geracionais, por exemplo, considerando que meu pai é um homem negro, analfabeto, que saiu de região rural do interior da Bahia para conseguir um emprego melhor em São Paulo e que minha mãe, que  começou a trabalhar como doméstica aos 8 anos, conseguiu concluir a quarta série do antigo ensino primário aos 17 anos e teve que parar de estudar para focar no trabalho como doméstica, podemos já assumir que as possibilidades de orientação sobre saber formal dos meus pais foram restritas, pois eles não tiveram acesso à educação formal e a lógica das instituições. Entramos, eu e meu irmão, nesses espaços com a cara e a coragem como os primeiros das famílias fazem. Então, a esses elementos de capital cultural somaram-se os de capital econômico, os de capital social ( pois somos pretos em uma sociedade pós escravista racialmente estruturada) e , claro, de gênero. Assim, o conceito de “ciclo repetido de desvantagens competitivas”, que o Ministro Joaquim Barbosa trouxe ao plenário do STF durante o julgamento das cotas em maio de 2012, aplica-se a minha trajetória, quando paro para pensar nas dificuldades resultantes de violências e micro violências que enfrentei e enfrento no meu cotidiano.

Quando eu recebi a minha bolsa para estudar em Montreal, no instituto Equitas, a minha coordenadora no TJ SP não autorizou o meu afastamento para participar daquele curso, que era também um reconhecimento acadêmico, tive que recorrer à presidência do Tribunal. Quando recebi a bolsa do PNUD para atuar junto a missão do Brasil na ONU de Genebra o Desembargador com quem trabalhava não autorizou meu afastamento, tive que recorrer à presidência, novamente. Quando no Rio de Janeiro fui conversar com a advogada da CEJIL, para  ter acesso aos documentos do “Caso Simone Diniz”, que já tinha sido julgado 8 anos antes e  que eu estudava,  ela foi confortavelmente grosseira comigo e negou o acesso sem qualquer justificativa ( Eu depois participei de uma banca de TCC da vizinha da Simone Diniz e tive acesso as cópias de todo o inquérito, porque o que é pra ser é e não caminhamos sozinhas”).

Mas, sim, tudo é menos fácil para uma mulher negra “fora do seu devido lugar”, muitas pessoas sentem a necessidade de dificultar as coisas em razão do incomodo cognitivo causado pela minha trajetória. Pessoas brancas e negras, homens e mulheres. Que manifestam sua admiração da forma mais oposta possível, com o sentimento de inveja (se não tenho, o outro também não terá). Encarar essas repetidas violências, que são mais intensas quanto mais consciente nos tornamos da não naturalidade de determinados comportamentos, aparentemente neutros, e piadas, inocentes, para conosco é um desafio que suporto com o apoio familiar e da minha sólida rede de amigos queridos. Minha família nuclear, meu pai, minha mãe e meu irmão são fortes apoiadores da minha “vida com qualidade”.

Eu devo admitir que a solidez da minha família, mesmo em face de marcada humildade econômica e cultural, é um privilégio raro neste país. Uma segurança a mais que me permite valorizar o saber daqueles mais velhos que não tiveram chance de estudar, mas que sabem muito. Como eu disse na minha entrevista de conclusão de curso na UCLA Law: “Aqui eu apenas encontrei fundamentação teórica para o que aprendi com meus pais e meus pais aprenderam com seus pais…”. A minha rede de amigas também são um apoio marcante, são muito maduras emocionalmente, solidárias e respeitosas, algumas são professoras universitárias em universidades federais, outras técnicas do direito (juízas, promotoras, analistas), outras estrangeiras das minhas experiências no exterior. Apesar de estarmos distantes elas conseguem fazerem-se presentes e me ajudar com o meu processo de recuperação das repetidas agressões e violências cotidianas.

EJC – Você atua em muitas especialidades do Direito. Existe alguma delas que pessoalmente considera mais gratificante de trabalhar/pesquisar?

Sim, a área de Direitos Humanos, área veículo para que eu pudesse recepcionar em nosso sistema de Civil Law uma teoria de Commom law, é mesmo transversal e multidisciplinar. Não está somente presente em diversos ramos do Direito, Penal, Processual Penal, Direito Civil, Direito Tributário, mas necessita, também, do saber histórico, sociológico, psicológico, antropológico, dentre outros saberes. A área que eu posso dizer que me realiza é aquela que eu tento estruturar desde o meu primeiro ano da graduação e que batizei de “Justiça Racial”.  É uma ambição de produzir saber no direito que seja útil e não mais críticas para ouvidos surdos, um saber que viabilize um diálogo profícuo com quem está instrumentalizando a máquina. Para termos uma atuação transformadora precisamos que se pense fora da caixinha (filosofia do direito), que se produza categorias em diferentes áreas do saber jurídico (dogmática) e que este saber seja de instrumentalização (processo e procedimento) viável. Ocorre que para pensar tudo isso, um sistema inteiro, é necessário primeiro saber teoria e prática sobre o sistema e, depois, fazer o giro epistemológico com segurança, para que o saber produzido continue sendo do direito (jurídico) mas não reproduza as estruturas de injustiça.

EJC – Estamos no Ano Internacional da Mulher Rural pela Organização das Nações Unidas. O intuito é discutir maneiras concretas de empoderar as mulheres das áreas rurais do mundo. Como pesquisadora dos Direitos Humanos teria sugestões de como isso pode ser feito?

As demandas das mulheres que moram em região rural, são típicas demandas intersecionais. A categoria, cunhada pela professora Kimberlé Crenshaw, minha orientadora na UCLA Law, foi idealizada tentando destacar que direitos humanos das mulheres precisam ser atentos para o fato de que as mulheres não são universais. A diversidade também se faz presente nas necessidades resultantes da identidade de gênero. Nesse sentido, por exemplo, algumas dinâmicas que se impõe em razão da interseção de gênero e localização geográfica, como a necessidade de desenvolver fontes de renda relacionadas ao trabalho rural, o estímulo possível ao empreendedorismo no artesanato, a educação para esse empreendedorismo e trabalho. São exemplos de intervenções especificadas de políticas públicas que buscam promover Direitos Humanos das mulheres da região rural a partir de uma compreensão metodológica intersecional. Isso porque, se nos atemos somente as demandas de uma ideia de “mulher universal”, poderíamos identificar como prioridade o debate sobre o direito ao aborto, quando esse debate também é importante para essas mulheres, no entanto, garantido esse direito, um sistema único de saúde ainda não as alcançou para efetivar essa “conquista da mulher universal”, então, para essas mulheres, um olhar atento aos seus desafios específicos permitirá que possam gozar de seus direitos humanos e fundamentais de forma plena, sem obstáculos sejam estes por serem mulheres, sejam por serem elas mulheres em região rural.

Como educadora em Direitos Humanos, acredito imensamente, que direitos não reconhecidos como direitos não são sedimentados como conquistas. Assim, parte do processo de empoderamento também passa por  viabilizar maior acesso a educação e informação para essas mulheres, de forma que elas saibam quem são, onde estão e tomem consciência dos seus potencias políticos econômicos.

EJC – Como profissional e pesquisadora dos direitos de diferentes grupos, o que ainda gostaria de fazer? Aonde ainda gostaria de chegar?

Boa pergunta. A minha trajetória é ampla, diversa e complexa, difícil para muitos fora da teoria crítica racial do direito entenderem, no entanto, sempre mantive como eixo de observação a teoria crítica racial. Acontece que já trabalhei em todos espaços jurídicos possíveis. Como assistente de juiz, de desembargador, de ministro de Suprema Corte. Já assisti secretários em Missão junto a ONU de Genebra, já pesquise e estudei nos EUA, Canadá e Alemanha, sempre sobre raça e às vezes em Direitos Humanos. Tudo isso com bolsas do governo do Estado de São Paulo, bolsas da ONU (PNUD), bolsas do governo canadense ou bolsas do governo americano.

Sinceramente, ando pensando muito em férias, em viagens de lazer e escrita de algumas sistematizações dos meus pensamentos recentes e “antigos”.  Meu primo de consideração outro dia repetiu para mim no carro uma frase que minha mãe me diz, sempre que confidencio a ela por telefone que algo me irritou no trabalho: “você não foi aí pra isso”. Acho que era aqui que eu queria chegar, fez parte dos meus planos, pelo menos é como me sinto neste momento da minha vida.

EJC – A sua palestra no Encontro de Jovens Cientistas será “Da África do Recôncavo ao Recôncavo da África”. O que pretende falar às nossas crianças e adolescentes?

Acho que me apresentarei, inicialmente, como sempre faço. Minha trajetória com origens fortes no Recôncavo baiano somadas às outras origens do Sul da Bahia me levaram até a UNILAB, que é a “África possível”  de muitos jovens brasileiros que querem aprender sobre aquele continente imenso. Um continente cheio de grupos étnicos, línguas, comidas, identidades e tecidos lindos ( sou suspeita porque amo as roupas de Gana, mas agora minha fonte de tecidos é de Guiné Bissau, rs).

Acho que será importante apresentar a África escondida no recôncavo, que meus alunos me confidenciam. Creio que assim como eu, o baiano não sabe o quão africano é o Recôncavo e a capital do Estado, mesmo repetindo essa afirmação para todo turista que chega.

Eventualmente terei a colaboração de alguns alunos do projeto de extensão que coordeno. Creio que será mais poderoso ouvir deles a afirmação de que “Morar na região metropolitana de Salvador é como morar do outro lado da minha Ilha, são pessoas que não conheço, mas sei que são do meu país”. Mas, claro, que o bate papo será o mais profícuo. Como sempre, as trocas é que constroem saber e esses jovens me ensinam todos os dias.

EJC – Que mensagem de estímulo deixaria aos jovens que estão descobrindo as suas vocações e querem ser profissionais e pesquisadores que farão a diferença para o nosso país?

“Perca tudo, menos a piada! ”  Brincadeira.

Levem a vida com equilíbrio.  Busquem encontrar esse eixo dentro de vocês, mas não esqueçam de que não somos ilhas.  A manutenção desse equilíbrio, quando achado, dependerá da nossa habilidade de não entrar no caos do outro, mas de trazê-lo para a nossa paz.

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