Preconceito Zero

Constrangimento para uns e indignação para outros foram as reações à frase do ministro José Grazziano a respeito da migração dos nordestino: ‘‘Temos de criar emprego lá, temos de gerar oportunidade de educação lá, temos de gerar cidadania lá, porque, se continuarem vindo para cá, vamos ter de continuar andando de carro blindado”.

Por Sueli Carneiro

O ministro da fome fala como alguém das classes abastadas:‘‘Vamos ter que continuar andando de carro blindado”. O que é isso, companheiro? Num governo que tem por presidente alguém que se mistura com seu povo no limite de sua segurança pessoal, não é admissível ministros, sobretudo da fome, confundir-se, ainda que metaforicamente, com aqueles que precisam de carros blindados para circular entre o povo.

Pior, a violência quando os atinge é desigual, esporádica e residual se comparada ao cotidiano vivido pelos deserdados. Pois os padrões da violência urbana no país, conforme estudos de especialista que compõe o atual governo, têm contornos muito precisos de classe e raça, como já discutimos em outros artigos nesta coluna: as vítimas são majoritariamente homens, pobres e negros, vítimas e algozes de maneira sistemática de outros homens, pobres e negros. sem blindagem.

A frase do ministro reforça um paradigma de senso comum que tributa a certos segmentos sociais, regionais ou raciais a responsabilidade pelas mazelas sociais, eximindo conseqüentemente os personagens e processos históricos responsáveis por elas.

De quebra, mas não menos nociva, a frase, não infeliz, mas reveladora como são os ‘‘atos falhos”, desencadeou, além dos protestos esperados, a ‘‘caixa de Pandora” que guarda o racismo e outros preconceitos. Em sua esteira, outras manifestações de preconceitos se sentiram autorizadas, como: filho zero para alcançar a fome zero, ou seja, controle da natalidade dos pobres e miseráveis como condicionante para a redução da pobreza.

Argumento que ignora ou escamoteia que a transição demográfica já ocorreu neste país à custa da esterilização maciça de mulheres sobretudo pobres, nordestinas e não-brancas fazendo do Brasil um recordista mundial de esterilização de mulheres em idade reprodutiva. Sem contudo reduzir a pobreza. Outros aproveitam a chance de expressar e justificar a sua xenofobia em relação aos nordestinos.

O ‘‘ato falho” revela também a motivação que determina o caráter tutelar do Programa Fome Zero, pelas pressuposições negativas em relação às populações excluídas e marginalizadas, das quais se pensa não serem capazes de ‘‘administrar” as suas necessidades nutricionais sem rigoroso monitoramento. Como desserviço final, o ministro se apega à negação do seu ato preconceituoso, atitude típica de nossa conduta social nesse tema.

Racismos e preconceitos são ideologias introjetadas por todos nós. A cura dessa patologia social depende em primeiro lugar de seu reconhecimento no plano social e individual. O ministro perdeu a oportunidade de, como autoridade pública, utilizar pedagogicamente, para todos, esse momento de ‘‘auto-revelação”, reconhecendo o desvio e tomando-o como exemplo do quanto a nossa subjetividade está eivada de preconceitos que a razão rejeita, mas a emoção, às vezes, nos momentos mais inoportunos, trai.

Reconhecer a presença do preconceito, explicitá-la, desmascarar seu vigor como parte da ideologia racista são o passo inaugural da verdadeira mudança. A coragem de transpor essa barreira oferece uma abertura para o engajamento nas verdadeiras ações de superação de um dos mais fortes fatores que estão nas raízes da fome. Oferece a possibilidade de encontro e aliança com indivíduos e grupos que, desde séculos, constroem mecanismos de inserção social frente à injustiça e à desigualdade. Oferece a medida da estatura do homem público preparado para a grandeza de sua missão, mas também consciente de suas limitações. Seria para o ministro Grazziano o momento fértil de dar esse salto que permitirá a nós cidadãs e cidadãos que dedicamos a vida à luta contra racismo, sexismo e o preconceito poder vir a chamá-lo, o quanto antes, de companheiro.

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