Preto no branco: 9 visões sobre onde está o racismo estrutural

Enviado por / FonteDo O Globo

Não conseguimos respirar. Falta ar há muito tempo. Há séculos. Protestos antirracistas se espalham pelos EUA desde que o cidadão negro George Floyd morreu sob o joelho de um policial branco.

Mas essa dor não é nova. É cotidiana principalmente no Brasil, que tem uma das maiores populações negras do mundo e reserva a ela a pior posição em sua estrutura deformada pela desigualdade.

Estrutura é mesmo a palavra mais apropriada para descrever o que está no subtexto de absurdos similares no Brasil, como a perda das vidas de Miguel Otávio, aos 5 anos, João Pedro, aos 13, e Ágatha Vitória, aos 8.

Apenas três vítimas recentes entre tantas outras num país em que a cor da pele determina quem é mais vulnerável e tem menos chances.

Neste espaço, alguns dos jornalistas negros do GLOBO refletem sobre as diferentes dimensões em que essa situação de desvantagem e ameaça se desenha, silenciosamente. É quase imperceptível para quem não é negro, mas contundentemente explícita para quem é.

O racismo estrutural está em todos os lugares no Brasil, inclusive na Redação do GLOBO. Atualmente, o número de jornalistas negros não chega a 10% do total, muito distante da atual proporção de pretos e pardos no país.

Segundo essa classificação do IBGE, mais da metade da população brasileira é negra. Mas a tomada de decisão na maioria das empresas, inclusive neste jornal, ainda é branca.

Apesar de avanços recentes, os muitos talentos negros do país até hoje têm mais dificuldades de chegar ao ensino superior e às redes pessoais que podem conduzi-los às melhores posições, mostram estatísticas bem conhecidas.

E para muitos profissionais negros, ainda assim, saltar esses obstáculos não é suficiente. Batem de frente com a estrutura.

Nos últimos anos, O GLOBO vem buscando corrigir essa distorção ampliando oportunidades. Num pequeno passo, o fator representatividade foi incluído nos critérios de seleção de estagiários e trainees, sem abrir mão dos melhores profissionais.

Porque muitos deles são negros, e a diversidade é fundamental para qualquer empresa. Mas ainda há muito mais a fazer.

Onde está o racismo?

Confira abaixo visões de nove jornalistas e colunistas sobre as entranhas desse mal, resultado de um projeto especial publicado em O GLOBO neste domingo. O material foi desenvolvido somente por profisisonais negros da Redação, com edição de Alexandre Rodrigues (editor assistente de Economia), diagramação de Murilo Soares (diagramador da Editoria de Arte) e ilustração de Gabriel Benedito (ilustrador da Editoria de Arte).

A íntegra de todos os artigos está disponível no site do GLOBO com acesso aberto a todos, assinantes do jornal ou não.

Morreu porque era filho da empregada

Flávia Oliveira, colunista de Opinião

Flávia Oliveira, colunista de Opinião (Foto: Arquivo/ O Globo)

Foi o racismo estrutural, no qual o Brasil está assentado, que tomou pelas mãos Miguel Otávio Santana da Silva, levou-o até o elevador, apertou o botão de um andar alto, liberou a porta e, indiferente, retornou ao lar.

Selou assim o destino ao qual crianças negras estão vinculadas por um projeto desumano e macabro, travestido de fatalidade.

O menino, 5 aninhos, desembarcou, passou por uma porta. À procura da mãe, deu numa área sem tela de proteção, despencou de altura de 35 metros. Era filho único da empregada doméstica Mirtes Renata.

Morreu porque era filho da empregada. Se herdeiro da patroa, estaria vivo.

Passaporte limitado para o ‘ir e vir’

Gilberto Porcidonio, repórter da Editoria Rio

Gilberto Porcidonio, repórter da Editoria Rio (Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo)

Antes mesmo de o racismo explícito voltar a ser viral – o que nos lembra do verdadeiro porquê de a palavra humanidade ser grafada com letra minúscula -, essa geração afrodescendente que os americanos têm chamado de woke (os despertados) já se debruçava sobre qual seria o futuro que se quer.

Um jornalista, no Brasil, é um privilegiado. Ele fala, escreve, opina, observa e circula muito entre ambientes e classes sociais diferentes em um país que prende ou mata quem diverge da cor de pele vigente.

Um crachá com o seu nome acompanhado da inscrição “Imprensa” em destaque pode até ser um passe livre para o Brasil dotado do direito de ir e vir. Porém, essa identificação muitas vezes é questionada, chegando ao ponto até de ligarem para a redação para confirmar.

Negros não podem apenas ser

Flávia Barbosa, editora executiva

Flávia Barbosa, editora executiva (Foto: Arquivo/ O Globo)

Uma das faces inequívocas do racismo que opera nosso cotidiano de injustiças toma emprestado da mulher de César o ditado: aos negros, não basta ser; é preciso parecer.

Da infância à vida adulta, são orientados —nem sempre explicitamente — a seguir um perverso manual de sobrevivência.

Vestir-se “bem”, ter cabelo “normal”, sempre portar documentos, nunca andar em turma. Mandamentos que roubam da comunidade preta o direito a uma identidade e de ter valor simplesmente pelo caráter.

Um garotinho branco correndo suado está voltando para casa após brincadeiras; o negro arrisca ser tratado como trombadinha. O adolescente que curte música e anda em grupo de touca é um rebelde, se branco; se negro, pode ser de uma gangue de arrastão.

Bem além da publicidade

Marcello Corrêa, repórter de Economia em Brasília

Marcello Corrêa, repórter de Economia em Brasília (Foto: Arquivo/ O Globo)

Em 1990, o astro do basquete americano Michael Jordan causou controvérsia ao não tomar partido nas eleições para o Senado na Carolina do Norte, onde cresceu.

A disputa era entre Harvey Gantt, democrata e negro, e Jesse Helms, republicano, branco e conhecido por atos racistas. A frase do atleta para justificar sua decisão marcaria sua carreira: “Republicanos também compram tênis”.

Ele era o rosto da rentável marca de calçados esportivos Air Jordan, recém-lançada. Trinta anos depois, Gantt, que acabou perdendo a eleição, reconheceu que Jordan não tinha opção a não ser a omissão diante dos riscos comerciais.

Essa visão não poderia estar mais errada hoje. O público exige que marcas demonstrem de que lado estão.

Dinheiro é poder de decisão

Camilla Pontes, repórter e colunista de Economia

Camilla Pontes, repórter de Economia e colunista do Extra (Foto: Leo Martins / Agência O Globo)

“Se não me vejo, não compro.” Esse é um dos slogans do movimento Black Money, que na tradução literal é dinheiro preto.

Essa iniciativa vem sendo aplicada há alguns anos por diversos empreendedores e empresários negros como uma forma de estimular o consumo e a prestação de serviços entre a fatia que representa 54% da população brasileira, segundo o IBGE.

Uma pesquisa de 2019 da Feira Preta em parceira com o Instituto Locomotiva mostrou que os negros do Brasil movimentam uma renda de R$ 1,7 trilhão por ano, mas esse dinheiro, ou melhor, o lucro ainda não está todo em mãos pretas.

Quantos chefes negros você já teve?

Ana Carolina Diniz, repórter de Morar Bem e Boa Chance

Ana Carolina Diniz, repórter de Morar Bem e Boa Chance (Foto: Arquivo/ O Globo)

Os números estão aí para mostrar a disparidade racial no mercado de trabalho. Pessoas pretas ou pardas exercem apenas 29,9% dos cargos gerenciais. Negros ganham menos que brancos, independentemente do nível educacional, segundo dados do IBGE.

Nas 500 maiores empresas brasileiras, segundo o Instituto Ethos, 4,7% da liderança são compostos por negros. Mulheres negras são nem 1%.

Saindo da frieza das estatísticas, faça um exercício: com quantos negros você trabalha? Quantos chefes negros você teve? Em 20 anos de jornalismo, tive dois.

Voz contra a intolerância religiosa

Cíntia cruz, repórter da Editoria Rio

Cíntia Cruz, repórter da Editoria Rio (Foto: Arquivo/ O Globo)

Quando a violência chega a um terreiro, todo religioso de matriz africana é atingido. Violência que começa antes de um quarto de santo ser depredado. Tem início no que está por trás do sentido pejorativo atribuído à religião: o preconceito.

Como combater? Conhecendo. E o jornalismo precisa, mais do que voz, dar liberdade para que a voz brade.

Nasci dentro de um terreiro de candomblé na Baixada Fluminense. Um adendo pessoal que contextualiza o que significa para mim a cobertura religiosa. Além de espaço religioso, terreiro é local de resistência.

Escritores que são invisíveis

Ana Paula Lisboa, colunista do Segundo Caderno

Ana Paula Lisboa, colunista do Segundo Caderno (Foto: Arquivo/ O Globo)

A pesquisa da professora Regina Dalcastagnè e o livro “Um território contestado: literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais” deram números ao que qualquer escritor negro já sabia: a literatura brasileira é racista.

Segundo ela, ao ler 692 romances, publicados por 383 autores nos períodos de 1965 a 1979, de 1990 a 2004 e de 2005 a 2014, percebe-se que o perfil do escritor brasileiro é o homem branco, de classe média, heterossexual, morador de Rio, São Paulo ou Rio Grande do Sul.

E mais, seus protagonistas, o espaço e o tempo criados por esses autores se parecem muito com eles. É na tentativa de invisibilização do escritor e do personagem negro que está o racismo.

Quem faz falta na solução

Luana Génot, colunista da Revista Ela e diretora executiva do ID_BR

Luana Génot, colunista da Revista Ela e diretora-executiva do ID_BR (Foto: Arquivo/ O Globo)

Se você me perguntar onde está o racismo, eu te direi que ele está no nosso dia a dia, na nossa estrutura, dentro e fora de nós.

Antes de apontar para o outro, é preciso apontar para si mesmo, se incluir como parte do problema para poder se tornar parte da solução.

Dentre as inúmeras manifestações do racismo, a do mercado de trabalho é uma das que mais me chamam a atenção. É um problema grave que impossibilita o país de evoluir economicamente.

É impossível ter um mercado potente se mais de 50% da população não conseguem ascender a cargos mais estratégicos.

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