Primeiro foram os meus professores, mas não me importei

Hoje, 30 de abril de 2015, esta coluna será um tanto diferente das demais. A partir do massacre ocorrido no Centro Cívico de Curitiba, de segunda-feira ao dia de ontem, entendemos ser vital expor os intestinos do que o Estado é capaz de fazer para garantir a “paz social”, a “ordem pública”, a “liberdade de votos” e outras tantas falácias que servem para legitimar suas práticas. Para garantir a possibilidade de governar, intimidar os “inimigos” é essencial. E, neste caso, são os servidores estaduais, em especial os professores do Paraná.

Por Gustavo Noronha de Ávila e Vera M. Guilherme do Justificando

Aquele Estado viveu ontem, 29 de Abril, um dos mais tristes capítulos de sua história recente. 213 professores ficaram feridos ao tentarem fazer aquilo que deveria ser absolutamente natural em uma democracia: acompanhar, na Assembléia Legislativa do Estado, a votação de um Projeto de Lei no qual tinham todo interesse, pois tratava da Previdência para a qual contribuíram durante muitos anos.

Diversos foram os artifícios lançados pelo desgovernador Richa para impedir que os professores sequer tivessem acesso à Assembleia Legislativa. Contou com o apoio do Judiciário, que vedava a entrada de manifestantes nas dependências da Casa do “Povo”, além do silêncio de vários setores ditos democráticos.

É necessário, nesse contexto, interrogarmos qual é o papel do Direito. Os dois lados, que não deveriam ser opostos, recorreram ao Poder Judiciário para preservarem seus interesses. Houve a concessão de um interdito proibitório, em favor do governo que limitaria o acesso à Assembléia Legislativa, sob a alegação de uma grande possibilidade de invasão. O cercamento militar passou a ser justificado, então, como simples cumprimento à ordem judicial.

Por outro lado, coletivos impetraram Habeas Corpus preventivo, com a intenção de fazer valer a ideia de que a “casa do povo” só deveria possuir sentido com o povo ali dentro. A ordem foi concedida, porém, a seguir, derrubada para limitar o acesso à votação de ontem apenas aos dirigentes sindicais, que rejeitaram a possibilidade. Ou seja, enquanto o Direito servir como instrumento de simples manutenção da ordem posta, será mera forma de realização, manutenção, perpetuação de poder. Quando for (se é que seria possível) instrumento de subversão à desordens, terá atingido seu maior objetivo e horizonte, a liberdade.

Richa arregimentou policiais militares do interior, a maioria ainda no início de suas carreiras, que viajaram por mais de 6 horas de ônibus em pé, sem receber diárias sequer para pagarem seus hotéis, de forma a aumentar o número de “combatentes” na guerra que ele mesmo declarou. E garantiu esse espetáculo grotesco a ser apreciado por seus assessores, conforme vídeo divulgado ainda ontem; ali assessores comemoram as agressões dos policiais aos professores, com risadas e gritos orgásticos. E, importante ressalvar, contou com o apoio de 31 deputados estaduais a sua forma de “fazer política”.

Contou, ainda, com o silêncio do governo federal. Uma comissão do Senado que chega ao estado apenas hoje, quinta-feira, para acompanhar a situação um dia depois do massacre ocorrido.

Foucault nos ensina, com a noção de ilegalismos, que o Estado se beneficia das regras postas por ele próprio. Por um lado, não as cumpre. Por outro, exige que os demais o façam. As opressões e tiranias podem também existir em uma democracia e mais uma prova foi dada ontem, em Curitiba. Porém, desde Hobbes, conhecemos a noção de direito de resistência, ou seja, a possibilidade de o súdito se insurgir contra o soberano quando este descumpre as regras postas por ele próprio.

Assim foi reeleito Beto Richa. Garantiu que o estado do Paraná estava prosperando, que as contas estavam em ordem, que sua administração primava pela eficiência. A maioria de seus eleitores, movida por uma repulsa imensa às práticas políticas de sua principal adversária no processo eleitoral, acreditou no que havia sido afirmado – e, diga-se, o mesmo fenômeno ocorreu a nível federal, com eleições polarizadas a partir dessa mesma lógica. O resultado no PR foi nefasto: a máscara caiu, a responsabilidade não foi assumida pelo desgovernante, e a conta deverá ser paga, inicialmente, pelos servidores que, apesar de contribuírem durante anos para o Paranaprevidência, viverão um futuro cada vez mais difícil.

Aos que pensam “mas não sou servidor, eles que se danem”, cabe ressaltar que a fome institucional deste governo não tende a parar por aí. Em algum momento isso vai explodir e respingar em todos os que vivem no Paraná, seja através de serviços públicos cada vez piores em termos de qualidade ou, ainda, através de tributação. A fome pelo poder é proporcional, diretamente proporcional, ao exercício da violência em suas múltiplas formas.

Com Edson Passetti, sabemos, que “os terrorismos não cessaram, tampouco os resíduos libertadores”, sequer os terrorismos de Estado. Para encerrarmos, deixamos com o leitor, que ainda pensa não ter nada a ver com isso, pois o caso ocorreu no Paraná (não sou morador do Estado), com professores (eu não sou professor) em greve (eu não faço greve), o poema Intertexto de Brecht. Que ele possa ecoar fundo e nos trazer de volta um pouco da liberdade e capacidade de indignação há muito perdidos:

 

“Primeiro levaram os negros

Mas não me importei com isso

Eu não era negro

 

Em seguida levaram alguns operários

Mas não me importei com isso

Eu também não era operário

 

Depois prenderam os miseráveis

Mas não me importei com isso

Porque eu não sou miserável

 

Depois agarraram uns desempregados

Mas como tenho meu emprego

Também não me importei

 

Agora estão me levando

Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo.” (Intertexto, Bertolt Brecht)

Gustavo Noronha de Ávila é Doutor e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor do Mestrado em Ciência Jurídica do Unicesumar. Professor de Direito Penal e Criminologia das Faculdades de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Unicesumar. Também é docente nos cursos de especialização em Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estadual de Maringá, Unicesumar, Instituto Paranaense de Ensino e do Centro Universitário Ritter dos Reis (Porto Alegre/RS). Autor da obra “Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque”, publicada pela Editora Lumen Juris (RJ).
 
Vera M. Guilherme é Bacharel em Pedagogia pela PUCRJ. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. Mestranda em Ciências Criminais na PUCRS. Bolsista da CAPES. Pesquisadora no Presídio Central de Porto Alegre. Autora da obra “Quem tem medo do lobo mau? Por uma leitura abolicionista do tráfico de drogas”, publicada pela Editora Lumen Juris (RJ).
 
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